segunda-feira, 26 de dezembro de 2022

Porto Alegre, 250


... e às vésperas de terminar 2022, nessa semana entre o Natal e o Ano Novo, em que o tempo parece suspenso, depois de muitas homenagens prestadas à cidade que completou seus 250 anos, calhou de eu finalizar agorinha um poema iniciado justamente na data festiva, 26 de março. Há 9 meses, portanto. Eis o recém-nascido:

I.

Nunca pude imaginar

o instante em que esta cidade

terá brotado de um ventre

suficientemente grande.

 

Antes a vejo incompleta,

construindo e destruindo

a si mesma, em sucessivas

ondas de modismos fúteis.

 

A joia arquitetônica de ontem,                    

convertida em obstáculo ao progresso,       

é condenada a desaparecer.                      

 

II.

Mesmo assim, sem muita fé,

tentei fazer minha parte

pra marcar a efeméride.

 

Cevei um mate,

cuidei dos gatos

e passarinhos

do meu amigo.

 

Depois do almoço,

subi ladeiras

e olhei as casas

dos milionários

e miseráveis.

 

Na sinaleira,

desviei o olhar

dos malabares

e mandolates.


III. 

Pelo rádio, ouvi as vozes de sempre,

com seus intermináveis comentários,

entre anúncios dos donos da cidade.

 

Estive conferindo a nova orla

- aquela que só mesmo o Jaime Lerner

seria capaz de ter desenhado.

 

Notei que o Minuano também veio

encrespar o Guaíba, mas de leve,

como quem sabe que é dia de festa.

 

IV.

Não importa que eu fique ou vá embora:

permanecerei.

 

Devia haver, contudo,

(não sei se é o melhor nome)

um pós-aniversário,

pra podermos pensar

sobre o que, afinal,

comemoramos. 


(Poema editado em 28/12/2022)

quarta-feira, 15 de junho de 2022

Do Brasil de 2022, um poema para Walter Benjamin

 Recebo com alegria a notícia de que mais um poema meu foi selecionado para publicação em antologia. Desta vez, trata-se do concurso promovido pelo Programa de Educação Tutorial em Letras da Universidade Federal de Alfenas MG (Unifal). Na presente edição, o concurso teve mais de 400 poemas inscritos.

Como de costume, publico aqui o poema (numa versão ligeiramente modificada em relação à que enviei para o concurso, em abril) e comento sua gênese atípica. Ele nasceu a partir de anotações feitas durante o 1º Congresso Internacional Walter Benjamin: Barbárie e memória ética, realizado na PUC-RS em setembro de 2018. Embora eu só tenha retomado essas notas com o propósito de transformá-las em poema mais de um ano depois de assistir à palestra da professora Alexia Bretas (UFABC), cheguei a aproveitar expressões e imagens utilizadas por ela. Menos do que configuraria um plágio, espero; porém mais do que apenas uma inspiração, e suficiente em todo o caso para registrar o fato e agradecer a ela (que não conheço pessoalmente).

Embora o tema desta edição do concurso fosse "lembranças" - o passado, portanto - o leitor informado irá perceber que o momento da publicação faz o poema soar terrivelmente atual. 

O título é uma expressão latina, cujo significado você pode pesquisar no Google. 


Memento mori 

Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie. (W. Benjamin, 1940)

Ao Sul do Sul, virou rotina

a desgraça: há sempre o luto

e os que sequer são dele dignos.


Há sempre um cadáver em cena:

casas de osso, carne, nervos;

corpos de pedra, cal e telhas.


Na história interrompida,

já não sabemos lembrar,

nem podemos esquecer.


(Ouvi dizer que os Ianomâmi

nos chamam, apropriadamente,

“povo do esquecimento”.)


Se o inimigo vencer,

vai reescrever o passado

e nem os mortos estarão a salvo.


Seu plano é plantar desertos,

estéreis de coisas e ideias

o solo assim como as mentes.


Mas os vivos, estes podem

                ainda escolher.



O livro completo com os 202 poemas selecionados pelo concurso pode ser lido aqui.

Na ilustração, obra do genial pintor Hyeronimus Bosch (século XVI)