sábado, 9 de julho de 2016

Um dia inesquecível

Foto de Tuti Flores
A semana que passou trouxe à lembrança um dia de fortes emoções, o 6 de julho de 2013. Lá estava eu, no Centro Cultural CEEE Érico Veríssimo, todo faceiro, recebendo o prêmio de "livro do ano" da Associação Gaúcha de Escritores, por meu quinto livro de poesia, Luta+vã (Ed. Libretos, 2012). O livro teve curadoria do Ronald Augusto, que selecionou poemas de meus três primeiros livros, além de um punhado de inéditos (entre os quais o que está reproduzido abaixo, e que abre o livro).

Já seria um dia inesquecível, claro, mas antes fosse só por isso. Acontece que, enquanto rolava a confraternização, a poucos metros dali o Mercado Público pegava fogo. A sala do Memorial do Mercado, onde eu trabalhava desde 2010, ficou completamente destruída. Na foto ao lado dá para ver o que sobrou da pequena mas valorosa biblioteca sobre gestão e políticas culturais, que eu vinha amealhando pacientemente ao longo dos últimos anos, e que trouxera de casa por falta de espaço.

Um dia e tanto, não?

Con anima

Que posso eu cantar de novo?
Salomão já fez os cânticos.
E o Outono, entretanto,
vem cobrando seu tributo:
quer sempre mais e mais frutos.

Sei que o Inverno já vem,
futuro exato, esperado.
Mas eis que brota, entre as pedras,
a mais teimosa das ervas
que nem a neve contém.

E tu, Primavera fresca,
vens inaugurar o espanto
e erguer, com ares de anjo,
novo castelo de vento
sobre as pedras da represa,

em cujas águas contidas
eu me vou banhar agora,
pois é Verão. Quem se importa
se haverá outros ou não,
se é de ti que sopra a vida?

segunda-feira, 4 de julho de 2016

Um requiem para Ulysses

O poema desta semana sai com algum atraso. Não é que falte material, mas a intenção de publicar com regularidade esbarra na falta de disciplina do autor, que ademais não tem o hábito jornalístico. Assim, depois de comemorar algumas efemérides (aniversário do lançamento de livros, dia das mães, etc.), comecei a me sentir atado por elas. Deu branco. Ia sortear um poema ao acaso, até que ontem, assistindo TV, me deparei com um documentário sobre Ulysses Guimarães, que faria 100 anos no próximo dia 6 de outubro (tá meio longe ainda, mas vá lá), cujo fantasma certamente assombra os pesadelos de certas lideranças fisiológicas de seu partido hoje em dia. Pois fui folhear meu livro O Primeiro Anel (1996) e não é que tinha lá um poema dedicado a ele?
Não é exatamente uma homenagem ao "Senhor Diretas", de quem não cheguei a ser um fã, embora seja impossível não ter saudades dele diante da deterioração de nossa classe política. É antes uma reflexão provocada pela enxurrada de elogios ouvidos (somente) após sua morte e também, é claro, pelo seu peculiar e poético desaparecimento, no mar e sem deixar vestígios.
Aproveito para homenagear também meu caro amigo Irno Lenz, que há exatamente um ano partia, deixando também para todos que o conheceram seu exemplo de luta e integridade.

REQUIEM IV

para Ulysses Guimarães
Morresse hoje, e seria
santo e sábio e bom
e forte como só aqueles
— os que se foram — é que sabem
ser, agora que não são mais.

Morresse hoje eu, e sobre
a tumba em abundância correriam
lágrimas de quem me desprezava.
(e para que correriam hoje,
lágrimasque em vão tentei
arrancar com versos, cartas,
promessas, súplicas e ameaças
de strip-tease?)

Morresse hoje eu, de repente,
e afinal saberiam todos
que me amavam, e eram todos
por mim amados: de um só golpe
saberiam todos, com certeza.

Nuvens que pairavam entre nós
se desfariam, e tudo estaria claro.
Agora saberiam, e agora
seria como sempre havia sido,
exceto por uma coisa:
seria tarde.

Morresse hoje eu, e encontrasses
tu, meu amigo, em minha estante,
estes versos cheios de presságio
e julgarias enfim que me compreendes,
agora sim; que sou sublime,
agora que, de fato,
já nada sou.

(Mas teria valido a pena,
ao menos, o tempo gasto
em escrevê-los...)

Morresse hoje, e os demais
habitantes do planeta,
esses bilhões de seres estranhos
(para não falar das pedras
do calçamento e do restante
do universo) nada sentiriam.


Isto é o que no fim das contas me consolará.

sexta-feira, 24 de junho de 2016

Simões, Érico e outro poema inédito, agora premiado

Capa da antologia
Lá pelo final do século passado, eu andava às voltas com teatro e, por encomenda do Marcelo Aquino, fiz uma adaptação de Ana Terra (que faz parte de O Continente, de Érico Veríssimo) para cena. Por influência do Lorca (e sua maravilhosa Yerma), partes do texto eram em versos, para serem cantadas ou declamadas. O resultado não ficou lá essas coisas, e pra cena nunca foi. (Contei essa história no prefácio de meu livro A aposta dos deuses.)
Em 2004, retomei esse material, me concentrando nessas partes, e o resultado foi o (ainda inédito) Romanceiro de Ana Terra, um conjunto de onze poemas que recontam aquela história. Dois desses poemas recriam temas folclóricos, não por acaso contados, no livro de Érico, pelo índio Pedro Missioneiro. Um deles é a Teiniaguá, ou Salamanca do Jarau.
Este ano, a Estância da Poesia Crioula resolveu homenagear João Simões Lopes Neto em um de seus concursos de poesia. Como se sabe, Simões, cuja morte completou 100 anos semana passada, havia contado já essa história, em seu livro Lendas do Sul (1913), e com certeza influenciara Érico, que foi um dos responsáveis pela decisiva reedição da obra do pelotense pela Livraria do Globo, em 1949.
Vai daí, resolvi retomar o trabalho nesse poema, e inscrevê-lo no concurso. Fui distinguido com uma menção honrosa, que irei receber depois de amanhã. Depois do churrasco, naturalmente. Ficou assim:

A TEINIAGUÁ

Os mouros de Salamanca,
expertos em artes mágicas,
ficaram loucos de raiva
quando foram derrotados
por armas dos reis de Espanha.
E foram buscar outros pagos...

Então - é o que diz o povo,
trouxeram ao Mundo Novo,
disfarçada entre sua gente,
a mais formosa princesa.
Vencendo mar e tormentas,
vieram dar no Continente.

Guardavam ódio da Igreja,
de santos, cruzes e padres.
Com o diabo fizeram parte,
pra transformar a formosa
princesa moura em feiosa
lagartixa sem cabeça.

E, no lugar da cabeça,
um cristal lhe pôs o demo,
mui transparente, vermelho.
E quando o sol refulgia
nessa gema, sem piedade,
o infeliz que a avistasse,
por descuido, até podia
cego de vez tornar-se.

Ó Teiniaguá,
cabeça de luz,
ai de quem te olhar
a olho nu.

E em sete noites de lua,
tudo ensinou-lhe o demônio:
as artes da bruxaria
mais poderosas que havia
e onde ficavam as furnas
que escondiam os tesouros.

Sendo mulher, e sutil,
desde logo a aprendiz
soube agradar a seu amo.
E em memória de sua terra,
no outro lado do Oceano,
“salamancas” se chamaram
as furnas amaldiçoadas,
que tanta riqueza encerram.

Ó Teiniaguá,
cabeça de sol,
vem me iluminar
em cada arrebol.

Por esses tempos mui duros,
no Povo de São Tomé,
houve um pobre sacristão,
mestiço de pouca fé.

Numa noite de verão,
sob a luz da lua cheia,
enquanto o padre dormia,
o sacristão tomou rumo
de uma lagoa que havia,
a poucas léguas da aldeia.

Nessa noite, a tal lagoa
um caldeirão parecia,
que andasse fervendo o diabo.
Peixe nenhum não se via,
passarinho também não;
o pasto em volta, queimado.
Foi aí que o sacristão
viu mexer-se alguma coisa:

Ó Teiniaguá,
cabeça de sol,
ai do que escutar
tua doce voz!

O sacristão ficou louco.
Pois a lenda que corria
dava, àquele que prendesse
a preciosa Teiniaguá,
poderes de morte e vida,
luxo e riquezas sem par,
castelos de prata e ouro,
rios de moeda corrente.

Tomou então da sua guampa
e nela meteu o bicho.
Escondeu-o em seu quartinho,
dele tratou com desvelo:
deu-lhe mel de lechiguana
e emprestou-lhe o próprio leito.

Ó Teiniaguá,
cabeça de luz,
ai de quem pecar
contra a Santa Cruz.

Mas um dia, a Teiniaguá
retomou a humana forma.
E o sacristão foi tomado
do amor mais louco que havia.

Na igreja buscou o vinho,
pra com ela se embriagar;
presa de enorme cobiça,
em troca de seus carinhos
roubou a Sagrada Hóstia.
Tornou-se, assim, desgraçado.

Dizem que é possível ver,
nas noites enluaradas,
vagar sua alma penada.
O que eu, cá comigo, não sei
é se procura um tesouro,
ou a princesa dos mouros,
que jurou torná-lo rei,
mas fez dele um pobre louco.

Ó Teiniaguá,
cabeça de sol,
ai de quem te amar:
será sempre só.

sexta-feira, 17 de junho de 2016

Um inédito, para variar


Esta semana, uma pessoa que não fala português, a quem fui apresentado por uma amiga comum como "poeta e músico", perguntou-me à queima-roupa sobre o último poema que eu havia escrito. Enquanto puxava em vão pela memória (nunca tive talento para memorizar poemas, meus ou de outrem), tentei ganhar tempo, explicando meu método de trabalho, que consiste em anotar ideias (em geral versos, com um certo ritmo) num caderno, parte das quais eu retomo (dias, meses ou anos) mais tarde, até ficar medianamente satisfeito com o resultado e então passar a limpo para o computador. Isso tudo em inglês, e depois de algumas cervejas... Resultado: não convenci nem a mim mesmo.
Como leitor de poesia não é coisa que anda por aí dando sopa, e não lembro de jamais me terem feito tal pergunta, apresso-me a respondê-la aqui. Assim, quem sabe, a língua portuguesa e eu ganhamos mais uma leitora. Vai aí então, como prova de que o blog não vive só do passado longínquo, essa canção despretensiosa e por ora sem nome, finalizada mês passado (se bem que ainda pode ser melhorada):

Não me entrego assim,
tão fácil. Não de graça.
Fecho a cara, sério:
há mistério em mim.

Não que eu me preserve:
preciso um pouco mais
de espaço em torno
para traçar meu rumo

Não me entrego fácil,
simplesmente, me reservo
o direito de ir em frente.
Quase sempre erro, e feio.

Não me entrego, é certo:
se errar é humano,
e o engano é belo
acertar não quero.

sábado, 11 de junho de 2016

Há 24 anos, vinha ao mundo meu primeiro "filho"




Capa de Carla Luzzato
Foi exatamente num dia 11 de junho, 24 anos atrás, que eu entrei de vez (ou fui jogado) no mundo das letras. Depois de ter alguns poemas classificados em concursos e publicados em antologias aqui e ali, saía meu primeiro livro individual.

A publicação foi consequência do Prêmio UFRGS de Literatura/Troféu Armindo Trevisan, concurso para escritores universitários gaúchos, lançado no ano anterior numa promoção conjunta entre a Pró-Reitoria de Extensão e o Instituto de Letras. O júri tinha Élvio Funck, Maria Luíza.Berwanger e Luís Augusto Fischer (a quem conheci então e que escreveu a apresentação do livro).

O livro saiu pela Editora da UFRGS, numa tiragem de 500 exemplares, já esgotada. Segue o poema de abertura. (Quem quiser mais, pode ler a íntegra do livro no meu site.)
Amigos no lançamento, no Campus Central da
UFRGS: da E para D, em pé, Karl Wüst, eu, Rômulo Giralt,
Renan Giralt,  Ivan Maraschin; sentados, Zé Barcellos e
Jorge Welzel. (Faltou o Zeca Oliveira, autor desta foto e da
outra, na contracapa do livro.)


Profissão


Me escrevo torto,
endireitando alegre as linhas
tortas do que trago:
saber e saudade.

Me explico um pouco
tenso, por escrito,
não sei se honesto
ou teatral-pálido.

Me canto suave,
cercado de ruas e pores-de-sol,
molhado de pranto 
até os ossos.

Me lanço ao mundo,
o rosto ao vento, 
ou tropeçando em versos,
aflito: vivo!