quarta-feira, 29 de outubro de 2025

Mais um soneto... premiado



Recebo com alegria a notícia de que meu Soneto 59 recebeu menção honrosa na 15º edição do Prêmio Nacional de Literatura dos Clubes, promovido pelo Sindicato de Clubes de São Paulo (Sindiclubes), Academia Paulista de Letras e Federação Nacional de Clubes (Fenaclubes).

O resultado foi anunciado ontem.


Ei-lo:




Soneto 59


Saio a caminhar pelo que um dia 

pretendeu tornar-se uma cidade         

de europeia estirpe e fidalguia   

– sonho, já se vê, inalcançável.  

  

Tudo ou quase tudo me incomoda:

lixo que transborda dos containers;

casas que abrigaram vidas, mortas;

máquinas de lata, onipresentes...

 

De vez em quando, alguma flor, criança

ou passarinho arrancam-me um sorriso;

algum olhar, de outro traz lembrança.

  

Encerro com uma dose de otimismo:

apesar das enchentes que sofremos,

por ora ainda não houve bombardeios.



segunda-feira, 27 de janeiro de 2025

O Monumento, um poema sobre a tragédia da Boate Kiss

O Monumento

Álvaro Santi


“Escrever um poema após Auschwitz é um ato bárbaro”
T. Adorno, 1949
 
I.
Disse um célebre filósofo germânico
que, após os campos de concentração,
já não é possível fazer poesia.
Não obstante a admiração que lhe dedico,
não posso concordar com essa bobagem.
 
Acaso a poesia é responsável
pelos crimes cometidos por nazistas
e outros bárbaros refinadíssimos?
Se é assim, então as artes todas
em honra aos mortos deveriam silenciar,
deixando-nos completamente entregues
aos torpes fabricantes de notícias?
 
Suponhamos, ademais, que eu não consiga
deixar de fazer meus humildes versos,
inspirados em crianças que brincam
na praça, ou nas que morrem em conflitos
em Gaza, Ucrânia, Líbia, Brumadinho...
 
E após tantas bombas do céu despejadas,
e para abafar com a voz seu barulho,
suponhamos que eu achasse necessário
escrevê-los, como quem cultua os mortos
ou lambe feridas em seu próprio corpo,
sem ter assim que dar explicações.
 
II.
Nesse caso, talvez, eu devesse iniciar
tal como Euclides da Cunha o faria,
descrevendo a paisagem de Santa Maria?
Retratar os primitivos habitantes
dessa terra e seu entorno, as condições
de vida, e como, com o passar dos tempos,
restaram submetidos pelos brancos?
 
Será preciso ainda ressaltar
que ali existem universidades
onde os jovens do entorno se encontram,
em busca de um futuro promissor;
ou recorrer aos meus conhecimentos
limitados de paleontologia
pra descrever os fósseis da região?
 
Ou entrar no assunto sem fazer rodeios
e arrolar de forma asséptica as duzentas
e quarenta e duas vítimas do incêndio
(sem contar os seiscentos e tantos feridos)
e por aí parar abruptamente;
fechar os ouvidos a todos os gritos
para não me contagiar de desespero,
evitando as armadilhas da pieguice.
 
Mas como, ao mesmo tempo, respeitar
a dor daqueles que sobreviveram?
Terei de emudecer em obediência
ao filósofo citado lá no início?
 
Em busca de mais objetividade,
poderia também consultar os inquéritos,
citar agravos, recursos, doutrinas,
que até hoje resultaram em pouca coisa;
falar dos que desprezam a vida humana,
em prol de mais dinheiro arrecadarem;
ou das autoridades que a justiça
tão raramente leva aos tribunais;
dos infinitos meandros dos processos,
capazes de fazer Moisés desanimar.
 
Pintar com tinta heroica mães e pais
dos jovens ausentes, em longas vigílias
reunidos, orando ou traçando planos,
percorrendo corredores e avenidas,
plantando flores e colhendo assinaturas.
 
Se tem razão Adorno, ao rejeitar
a possibilidade de poesia
após o horror tornado realidade,
minha própria vida o que teria sido?
(E o desespero que eu às vezes sinto
será devido à minha incompetência
pra filosofar em alemão?)
 
Mais fácil seria, professor Adorno,
se eu tivesse fé num deus que os acolhesse
a todos que o descaso e a cobiça
vitimam, sem deixar, contudo, de vingá-los
com rigor, no seu tempo devido.
 
III.
É noite. Contemplo a fachada sinistra,
em frente à qual já pode o transeunte
passar tranquilamente sem ouvir
qualquer grito ou inalar fumaça tóxica;
fachada que nem chama a atenção
de quem sai do moderno hipermercado,
levando a calça jeans da promoção
e um bom sanduíche pra comer mais tarde.
 
Foi bem ali que a sociedade trancafiou,
com ou sem ciência das autoridades,
centenas de jovens, dentre os mais brilhantes
futuros engenheiros e advogados,
possíveis médicas ou empresárias,
em ratoeira mais ou menos lucrativa.
 
(Depois? Ah, sim, depois vieram, em pencas,
audiências, sindicâncias, leis e normas,
fiscais, manuais, discursos contundentes...)
 
IV.
De repente, parece-me absurdo
que não exista ali um monumento,
uma praça ou, pelo menos, um canteiro
de flores que nos lembrem do cuidado
que é preciso ter com nossos filhos
e os filhos dos outros, de noite e de dia.
 
Monumento improvável, que desvele
da justiça alternativa imagem:
com a espada tingida de sangue inocente
e erguendo uma balança em que um dos pratos
está repleto de ouro, enquanto o oposto
sustenta pilha imensa de cadáveres.
 
Mas não! – melhor que sejam corpos vivos,
amantes e amados, repletos de luz,
em vez de bronze ou regular concreto,
já que o único sentido em erigi-lo
será proteger os seres viventes
que deixam suas casas neste exato instante
em busca de um amor, um beijo, alívio
de rir e de dançar e se entregar;
e, enquanto os protegemos, desculpar-nos
por lhes deixar país tão corrompido.
 
E ainda o imaginado monumento
tão pouco me parece, e tão mesquinho...
Mudar os nomes, é o que eu gostaria,
dessa rua, da cidade e até do estado.
E assim reivindicar aos jovens mortos
lugar cativo em panteão honroso,
substituindo até, quem sabe, alguns
dos heróis de outrora, já tão desgastados,
que seguimos louvando por mero costume.
 
Mas afinal percebo, em mim caindo,
o quão distante andou o meu delírio,
querendo reescrever da história os livros,
enquanto nem sequer nos autos há sentenças
que possam mitigar os traumas. E, em silêncio,
limito-me a construir este poema.
 
27/1/2025
12º aniversário do incêndio da Boate Kiss
80° aniversário da libertação de Auschwitz pelo Exército Vermelho
[texto editado em 14/10/2025]

domingo, 31 de dezembro de 2023

Um poema de ano novo... ou algo assim


A julgar pelo abandono em que se encontra este blog, ninguém diria quão intenso foi o ano do seu autor. Teve lançamento de livro novo e um inédito patronato da feira do livro de Lajeado, que me deram muitas alegrias. Tem outro livro a caminho, já revisado e prestes a ir para a impressão; e um terceiro bem adiantado na escrita, que deve sair em 2025.

Mas para não ficar o ano inteiro de 2023 sem postar nada, deixo aqui de última hora essa mensagem (?) de ano novo, escrita nos primeiros dias de 2022 e que está em Os Tons de Tudo. É sobre a necessidade que temos de olhar para trás e fazer balanços, para podermos melhorar nos anos que vem pela frente.

Um ótimo 2024 a tod@s.



Soneto 44 (Do ano novo)


Enquanto eu tomo o resto do espumante

(bebida adocicada que em geral

refugo e só nas festas de Natal

e Réveillon tolero, consoante

 

é tradição no mundo ocidental),

dedico-me a escrever uma mensagem

que, em vez de desejar felicidades

no ano que inicia a quem lerá,

 

nos anteriores fixa sua lente

­­(nos mais remotos e nos mais recentes),

em busca de um balanço, sempre mais

inútil quanto mais pareça urgente.

 

De resto, é tradição também das gentes

fazer balanços; e escrever, meu mal.

segunda-feira, 26 de dezembro de 2022

Porto Alegre, 250


... e às vésperas de terminar 2022, nessa semana entre o Natal e o Ano Novo, em que o tempo parece suspenso, depois de muitas homenagens prestadas à cidade que completou seus 250 anos, calhou de eu finalizar agorinha um poema iniciado justamente na data festiva, 26 de março. Há 9 meses, portanto. Eis o recém-nascido:

I.

Nunca pude imaginar

o instante em que esta cidade

terá brotado de um ventre

suficientemente grande.

 

Antes a vejo incompleta,

construindo e destruindo

a si mesma, em sucessivas

ondas de modismos fúteis.

 

A joia arquitetônica de ontem,                    

convertida em obstáculo ao progresso,       

é condenada a desaparecer.                      

 

II.

Mesmo assim, sem muita fé,

tentei fazer minha parte

pra marcar a efeméride.

 

Cevei um mate,

cuidei dos gatos

e passarinhos

do meu amigo.

 

Depois do almoço,

subi ladeiras

e olhei as casas

dos milionários

e miseráveis.

 

Na sinaleira,

desviei o olhar

dos malabares

e mandolates.


III. 

Pelo rádio, ouvi as vozes de sempre,

com seus intermináveis comentários,

entre anúncios dos donos da cidade.

 

Estive conferindo a nova orla

- aquela que só mesmo o Jaime Lerner

seria capaz de ter desenhado.

 

Notei que o Minuano também veio

encrespar o Guaíba, mas de leve,

como quem sabe que é dia de festa.

 

IV.

Não importa que eu fique ou vá embora:

permanecerei.

 

Devia haver, contudo,

(não sei se é o melhor nome)

um pós-aniversário,

pra podermos pensar

sobre o que, afinal,

comemoramos. 


(Poema editado em 28/12/2022)

quarta-feira, 15 de junho de 2022

Do Brasil de 2022, um poema para Walter Benjamin

 Recebo com alegria a notícia de que mais um poema meu foi selecionado para publicação em antologia. Desta vez, trata-se do concurso promovido pelo Programa de Educação Tutorial em Letras da Universidade Federal de Alfenas MG (Unifal). Na presente edição, o concurso teve mais de 400 poemas inscritos.

Como de costume, publico aqui o poema (numa versão ligeiramente modificada em relação à que enviei para o concurso, em abril) e comento sua gênese atípica. Ele nasceu a partir de anotações feitas durante o 1º Congresso Internacional Walter Benjamin: Barbárie e memória ética, realizado na PUC-RS em setembro de 2018. Embora eu só tenha retomado essas notas com o propósito de transformá-las em poema mais de um ano depois de assistir à palestra da professora Alexia Bretas (UFABC), cheguei a aproveitar expressões e imagens utilizadas por ela. Menos do que configuraria um plágio, espero; porém mais do que apenas uma inspiração, e suficiente em todo o caso para registrar o fato e agradecer a ela (que não conheço pessoalmente).

Embora o tema desta edição do concurso fosse "lembranças" - o passado, portanto - o leitor informado irá perceber que o momento da publicação faz o poema soar terrivelmente atual. 

O título é uma expressão latina, cujo significado você pode pesquisar no Google. 


Memento mori 

Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie. (W. Benjamin, 1940)

Ao Sul do Sul, virou rotina

a desgraça: há sempre o luto

e os que sequer são dele dignos.


Há sempre um cadáver em cena:

casas de osso, carne, nervos;

corpos de pedra, cal e telhas.


Na história interrompida,

já não sabemos lembrar,

nem podemos esquecer.


(Ouvi dizer que os Ianomâmi

nos chamam, apropriadamente,

“povo do esquecimento”.)


Se o inimigo vencer,

vai reescrever o passado

e nem os mortos estarão a salvo.


Seu plano é plantar desertos,

estéreis de coisas e ideias

o solo assim como as mentes.


Mas os vivos, estes podem

                ainda escolher.



O livro completo com os 202 poemas selecionados pelo concurso pode ser lido aqui.

Na ilustração, obra do genial pintor Hyeronimus Bosch (século XVI)