domingo, 7 de maio de 2017

Belchior e eu

Apenas um rapaz latino-americano que trabalhava num banco, sem parentes
importantes, vindo do (e voltando sempre que possível para o) interior.
(Foto da Vera Zagonel)
É difícil não pensar que o fato do Belchior ter escolhido ou sido levado por algum motivo a viver, se esconder (?) e finalmente morrer em Santa Cruz do Sul possa ter algum significado, mesmo que eu não faça ideia de qual seja. De certa forma, trata-se de um mistério similar ao fato de eu e muitos de meus(minhas) amigos(as), nascidos a poucos quilômetros dali, naquelas colônias alemãs tão distantes do Ceará em qualquer sentido, termos gostado tanto de suas canções. É fato que elas foram marcantes pra mim num momento em que começava a descobrir/inventar o desejo/necessidade de compor/escrever.

É pena eu não ter nenhuma história para contar, muito menos alguma foto de eventual encontro com ele por aqui. De fato, eu nunca cheguei a assistir a um seu show. Em vez disso, publico uma de minhas primeiríssimas canções, imitação descarada dele. Foi escrita por volta dos meus dezoito anos (portanto, sejam caridosos na crítica àquele jovem dos anos 1980), sobre uma harmonia franciscana, ainda mais simples do que a maioria das suas canções.

Confesso que chegava a imitar a voz rouca do ídolo, nas raras vezes em que tive coragem de cantá-la para alguém. (O que, obviamente, eu fazia também com as canções dele - como Mucuripe ou Galos, Noites e Quintais - parte essencial do meu repertório, como sabem os que testemunharam aqueles idos tempos em que me ensaiava como cantor de bar.)

não quero contar o que passei
vida é daqui prá frente
dizer quem sou é difícil
cabeça tão confusa
ciência não se entende com paixão
pernas cansadas do chão
eu que andei tão pouco

meu chapéu é o sol
o vento meu pente
quem me acha diferente
é sempre igual
posso até ser complicado
mas me entendo muito bem

sou maior e vacinado
reservista de terceira
sinais particulares só tenho calos
em quatro dedos da mão esquerda
de tocar violão
e a garganta irritada
com o ar desta cidade

olhos abertos vermelhos
acendo um cigarro e me mando
a vida me espera onde vou
quero ver o pôr-do-sol
noutro lugar

segunda-feira, 10 de abril de 2017

Dez anos de uma aposta

A saudosa Palavraria
Dia 10 de abril de 2007, há exatos dez anos, eu lançava meu quarto livro de poesia, que ocupa até hoje uma posição única dentro da minha produção, por duas razões.

Em primeiro lugar, o texto não era uma seleção de poemas avulsos, sobre temas diversos, aquilo que se convencionou chamar de "lírica", como o que eu publicara antes e sigo escrevendo até hoje. Em vez disso, eu tinha enfrentado o desafio de escrever uma peça de teatro à moda clássica, inteiramente em versos. Era a coisa mais fora de moda possível, custo-me anos de trabalho, mas também de diversão, e fiquei bem satisfeito com o resultado. Verdade que faltou alguém se interessar em levá-la aos palcos, mas ainda não perdi a esperança.

A lista de friends que me deram um help se completa com Cândida Santi (E) e
Sandra Alencar (D), que encenaram um trecho da peça
durante a Feira do Livro.
A segunda peculiaridade foi o processo produtivo do livro. Diferentemente dos três primeiros, todos publicados às custas do contribuinte (federal, estadual e municipal), em que minha participação resumiu-se a revisar as provas e dar algum pitaco na capa, eu tinha decidido produzir este de forma totalmente independente, o que resultou numa experiência interessante (embora com seus perrengues, como é fácil imaginar). O que não quer dizer que tenha me faltado "a little help from my friends" Márcia Lange, que me deu uma pequena e linda aquarela na forma de cartão de aniversário, há muitos anos; Zeca Oliveira, que a transformou numa bela capa; minha prima Eroni Schercher, que fez a ficha catalográfica; Charles Kiefer, que escreveu a apresentação do livro; Armindo Trevisan, de quem reproduzi, ao final, um pequeno ensaio sobre meus livros anteriores e Luiz Paulo Vasconcellos, que escreveu uma resenha muito lisonjeira, na saudosa revista Aplauso.

A obra foi inspirada na leitura de O Nascimento da Tragédia, de Nietzsche (mas curiosamente, virou uma comédia) Reproduzo aqui o início da primeira cena, em que são apresentados os protagonistas - os deuses do título, os irmãos gêmeos Apolo e Dionísio. Só para dar um gostinho, pois para entender precisa ler o livro todo, é claro (encomendas com o autor).

DIONÍSIO: - Ó ressaca miserável,
ó horrendo amanhecer!
Anjo da guarda, onde andaste,
que embriagar-me deixaste
até a razão perder?

APOLO: - Onde ele andava não sei,
já que anjos, não os temos
nós, aqui no Monte Olimpo. (para a platéia) 
Isto só muito mais tarde
é que vai ser inventado. (para Dionísio)
Resta saber onde andaste
tu, meu irmão preferido. 

DIONÍSIO: - Eis uma boa pergunta,
difícil de contestar
Até onde eu me recordo,
pela décima-segunda
taça de vinho me achava
entre os mortais, numa festa.
Soava uma estranha música,
semelhante a um bate-estacas
usado pra edificar
essas construções modernas.

APOLO: - Sei. Pareciam felizes
todos que lá se encontravam,
e agora estão de ressaca,
a mesma em que te achas tu.
Num caso assim os mortais
têm um ditado que cai
como uma luva em sua mão:
“O ébrio não é dono do seu c...”


segunda-feira, 3 de abril de 2017

O poema perdido

Até que eu estava em boa companhia, não foi?
Hoje vou abrir uma exceção e publicar aqui, não um poema, mas um não-poema. Explico.

Esse aí é o documento mais antigo do meu currículo. Eu o recebi juntamente com um cheque no valor de Cr$ 5 mil. Seja lá o que isso signifique em dinheiro de hoje, era um bocado para um guri de 16 anos, terminando o Auxiliar de Escritório. Foi o primeiro concurso literário em que me inscrevi. Enviei um poema que havia rabiscado numa das folhas brancas ao final de um livro de matemática.

O curioso, e ao mesmo tempo lamentável, é que o livro, de encadernação vagabunda, foi se desfazendo com o tempo. E o gênio aqui, ocupado com sua alta inspiração poética e, claro, não dando maior importância ao assunto, não se lembrou de fazer uma cópia do original datilografado que enviou pelo correio (Vai ver faltou papel carbono). Não me consta que o concurso tenha editado um livro com as obras premiadas. Tampouco fui à solenidade prevista (se de fato aconteceu). Em consequência, não me restou do poema mais que o título. Que remete vagamente ao programa Fantástico, onipresente nos lares brasileiros da época, e não muito animador como indício de originalidade, vá lá, no século XXI.

Quem sabe um dia - não perdi a esperança - eu o reencontro, numa visita à Biblioteca de Ijuí.

segunda-feira, 27 de março de 2017

Rondeau n. 1 - uma experiência visual

Lá pelo início dos anos 1990, eu terminava de escrever os poemas que viriam a compor meu primeiro livro, Viagens de uma Caneta por meus Estados de Espírito (que saiu em 1992). Minhas tentativas de escrita poética seguiam no rumo de uma crescente complexificação formal, intensificando o uso de rimas e assonâncias. O poema que apresento hoje marca o que considero o auge dessa experimentação, e ao mesmo tempo a chegada numa espécie de beco sem saída, já que depois de escrevê-lo ficou claro que eu tinha de buscar outros caminhos. (Vejam que as rimas não se encontram apenas no final dos versos, mas em qualquer ponto deles. Além disso, extrapolam o limite das estrofes, isto é, retornam ao longo do poema nas estrofes seguintes. São recursos pouco comuns) Agora, graças ao auxílio luxuoso do Marcel Goulart (que sabe escrever outro tipo de "versos", sobre os quais sou ignorante: aqueles que os computadores lêem), vocês poderão perceber as múltiplas correspondências sonoras entre os versos (inclusive de diferentes estrofes), com um simples movimento do mouse. Bom proveito.
  • O
    tempo
    passa,
    as
    horas
    voam...
  • ou
    será
    o
    tempo
    pirraça
  • dos
    sinos
    loucos
    que
    soam
  • em
    teus
    abismos
    -
    aqueles
  • que
    o
    poeta
    canta?
    Onde,
    eles?
  • Em
    vão
    procuras...
    Não
    vês?
  • São
    teus
    demônios
    que
    crescem,
  • enquanto
    desce
    a
    mais
    escura
  • noite,
    nos
    abismos
    do
    poeta.
  • O
    tempo
    passa,
    as
    horas
    voam...
  • ou
    será
    o
    tempo
    desgraça
  • que
    uns
    poucos
    relógios
    amontoam
  • sob
    os
    véus
    que
    ainda
    temos,
  • mesmo
    quando
    os
    escondemos
  • para
    em
    vão
    detê-los?...
    Não
    crês?
  • São
    teus
    hormônios
    que
    procuram
  • a
    mais
    pura
    forma
    de
    fazê-lo,
  • à
    noite.
    Ainda
    não
    esta...
    -
    Mas
    quando?!
  • O
    tempo
    passa,
    as
    horas
    voam...
  • ou
    será
    o
    tempo
    couraça,
  • para
    que
    roucos
    gemidos
    não
    doam
  • mais
    em
    Deus,
    ou
    em
    nós,
    tolos?
  • Se
    não
    na
    vida
    consolos,
  • e
    em
    vão
    tentamos
    ser
    fortes,
    não
    dês
  • atenção
    a
    teus
    neurônios
    cansados:
  • mais
    ousado
    é
    encontrar
    a
    morte
  • à
    noite,
    a
    sós,
    numa
    bala
    perdida.
  • O
    tempo
    passa,
    as
    horas
    voam...
  • ou
    será
    o
    tempo
    trapaça,
  • e
    a
    noite
    mais
    do
    que...
    fumaça?

domingo, 12 de março de 2017

Chega, Outono

Há cerca de um mês, ao voltar de férias, soube que meu local de trabalho ia mudar. E graças ao acaso, ao destino ou simplesmente às idas e vindas da nossa política, acabei não apenas no subsolo de uma biblioteca - eu, que devo tanto às bibliotecas - mas também no local onde funcionava a Coordenação do Livro e Literatura, onde pela primeira vez tomei contato com as políticas culturais da SMC (e as pessoas que as faziam acontecer), ainda cerca de um ano antes de eu mesmo me tornar parte desta instituição.

Foi lá que foi gestado, dentro de uma falecida coleção chamada Petit PoA, meu segundo livro, O Primeiro Anel (1996), já conhecido dos leitores deste blog. E que contém o poeminha sem título que segue, pensado num dia chuvoso como o de hoje, com vagas saudades do verão, numa parada de ônibus. (Aos leitores de fora do RS, é preciso esclarecer que Cidreira é uma praia.)

Um dia de outono escuro e molhado,
enchentes em todo interior do estado.
No abrigo-ilha, em ansiosa espera 
pelo ônibus, a gente se aglomera.

— Lá vem ele! - E posso ouvir com clareza
o suspiro, inundado de tristeza,
único som na multidão inteira...
É que este ônibus vai para Cidreira.