quinta-feira, 26 de maio de 2016

Mais poemas de "O Primeiro Anel" e a influência de João Cabral

O livro mais famoso de João Cabral
Vou ultrapassar a meta do blog, de "um poema por semana", e oferecer um bônus hoje.

Quando publiquei esse poema aqui, na véspera do dia das mães, disse que ele fazia parte de um tríptico, e como tal chegou de fato a ser publicado numa antologia, à época. Para quem gostou do primeiro e ficou curioso, republico o tal tríptico completo. Os outros dois poemas seguem a forma do anterior, com quatro quartetos de octossílabos, ritmo irregular (talvez por influência do João Cabral de Melo Neto, que andava lendo à época) e rimas consonantes.

Tenho a impressão que era o melhor que eu conseguia escrever nesses tempos. Na sequência, eu viria a abandonar progressivamente a rima consonante pela assonante (também apreciada pelo João Cabral, e mais frequente na poesia em espanhol do que em português) e dar mais atenção ao ritmo, como se veria já no terceiro livro, Dança das Palavras. Mas isso já é outra história.

I.
Não havia no dia um grito,
nem no grito lágrima ou dor;
nem soube encontrar o perito,
na lágrima, um gosto de flor.

A noite era rua deserta,
e a rua, estrada sem fim;
cada esquina, uma descoberta:
cheiro de vômito ou jasmim.

Não achei no dia o inferno,
nem, no inferno, meu doce amor;
nem sei dizer se é moderno
o estilo e a voz do cantor.

Habitavam a noite os sonhos,
e nos meus sonhos, um jardim;
na casa, fantasmas tristonhos
fugiam, com medo de mim.

II.
Dá-me um certo gozo a verdade
de me saber insuficiente:
onde te achar nesta cidade?
(sexta-feira, tão inclemente...)

Sei que invejo aqueles que adoro,
porque chegaram onde eu quis
ir, e amiúde a mim eu deploro
pelo pouco esforço que fiz.

Busco então teus passos na treva,
desejo o sonho, e muito mais.
Cada pensamento me eleva
e alivia, quando é teu cais.

Logo, sei, verei que és somente
um ser humano, e é justamente
tua pequenez o mais profundo:
igual a mim, igual ao mundo.

III.

para Isabela

Ao largo, no horizonte, bela,
ostenta  imaculada vela
a nave, como se levasse
o que sonhaste: quem te amasse.

Quem, embora nada soubesse
de ti, andava ao que parece
em teu encalço, pela estrada
de suave luar iluminada.

Trazia, sem embargo, a fronte
carregada de dor e um monte
de perguntas que ao mar jogava,
uma a uma, enquanto esperava:

se não seria tarde, agora;
ou quanto tempo o amor vigora?
Se pode o que arde ser falso;
ou ia um deus andar descalço?

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