quarta-feira, 11 de outubro de 2017

Um dia para pensar em quem não tem infância

Imagem do documentário Os Carvoeiros, de Nigel Noble (1999)
Para esse dia das crianças, deixo um recado nada festivo, mas oportuno e necessário.

Nos anos 1990, visitei no campus central da UFRGS uma exposição itinerante dedicada ao trabalho infantil, e fiquei chocado com as imagens que vi. Pensei então numa série de poemas que tratasse deste assunto. A forma de inocentes cantigas de roda serve de contraste à crueldade a que estão submetidas tantas crianças, situação ainda comum no Brasil e pelo mundo afora, como os noticiários nos lembram frequentemente.

O tríptico (conjunto de três poemas) que resultou dessa ideia foi premiado (terceiro lugar) no Concurso Mário Quintana do Instituto de Letras da UFRGS, em 1997.  Entre todos meus poemas, é provavelmente o mais publicado (em papel, ao menos). Além de figurar no meu segundo livro Dança das Palavras, publicado pelo Instituto Estadual do Livro em 1998; e no mais recente Luta+Vã (Libretos, 2012)), integrou duas coletâneas de poetas gaúchos: a primeira no número 9 da extinta revista Continente Sul-Sur, também do IEL, e a segunda publicada pela Assembleia Legislativa do RS, com organização do Dilan Camargo.


CANTIGAS DE RODA TÍPICAS DAS ÍNDIAS OCIDENTAIS 

I.

Atirei um pau no mato
O mato me devolveu
Menino não fez carvão
Foi de noite, não comeu

Menino que tosse, tosse
Menino, deixa eu sonhar
Sonhar só posso de noite
(Será fumaça ou luar?)

Eu sonhei que no cerrado
Eucalipto tinha não
Dia e noite só chovia
Molhava todo o carvão

(Lamento estragar o seu churrasco...)

II.

A foice cortou meu dedo,
e o sangue não era doce.
Tive medo,
ou bem melhor: desespero.
Também tive fome, e raiva.
Muita raiva.

Mas fiquei cortando a cana
até completar a cota
desse dia.
Até que o céu se tingisse
igual à cor de meu sangue
derramado.

Acho que eu queria mesmo
tingir o açúcar, tão branco,
de vermelho.
Açúcar que eu nunca vejo,
que recheia açucareiros,
há mais de trezentos anos.

(Quantos dedos, mãos e braços
de quantos meninos mortos,
em branco açúcar tornados,
já terão alimentado
engenho, fábrica, usina;
finas taças adoçado

com seu sangue?

III.

Primeiro foi meu pai,
segundo meu irmão,
terceiro já não lembro.
A mãe não falou nada:
se falasse, apanhava.
Depois, fugi de casa,
para não virar escrava.

— Ó prostitutazinha,
vamos brincar de amor?
— Brincar não sei que é,
não senhor.

Só sei que, de repente,
estava na avenida,
alugando meu ventre
só pra estrangeiro rico.
(Um ’té me deu presente:
queria me adotar,
levar junto com ele.)

— Ó prostitutazinha,
vamos brincar de amor?
— Amor não sei que é,
não senhor.

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