domingo, 21 de agosto de 2016

Só mais uma canção

Erika, a dona da voz, na gravação.
No embalo do poema da semana passada, que tinha violão, e já que o meu final de semana começou com música - cantei num pub na sexta à noite - e já que a música popular brasileira é a primeira influência detectável na minha poesia - aquilo que eu escutava nos anos 1970, quando meus conhecimentos de poesia escrita não iam além do conteúdo dos livros escolares - o poema da semana vai ser mais uma das letras que fiz. A canção está gravada no disco Trem da Utopia, e foi tema do videoclipe do meu amigo Júlio Munhoz.

Posto aqui a versão original, que é da década de 1980 e tem pequenas diferenças em relação à gravação, sendo a mais notável o corte dos dois últimos versos, que na hora de gravar me pareceram explícitos demais. (para compensar, cantamos a última estrofe 2 vezes e terminamos repetindo outra vez o primeiro verso dela). Que vocês acharam?



Procurar


Pelas ruas, onde as vozes
costumam se encontrar;
onde a lua, nas janelas
do décimo-quinto andar,
improvisa o nosso palco,
se a gente quiser cantar...

Fazer de cada um estrela a mais!
O sonho foi tudo o que nos restou.
Brilhar, pra não sumir de vez...

Olha as luzes da cidade,
mas não te deixa ofuscar.
Já termina um outro inverno,
tanta estrada sai daqui...

E essas montanhas não se vê jamais!
Nenhum de nós enxerga além de si.
Não passou por aqui a paz?

Deixa aí no chão o que restou de ti.
Vai, vai procurar as tuas lágrimas.
Ninguém sabe mesmo para onde ir.
Lemos o futuro em tuas entranhas.
Tanto medo só nos dá mais esperanças.
Tanta dor não cabe mais aqui...

sábado, 13 de agosto de 2016

Dia dos Pais, inclusive os que tocam violão

Pelo final dos 1980, quando eu ainda não era pai, mas volta e
meia alguém adormecia com aquelas musiquinhas que eu tocava.
(Foto Vera Zagonel)
Segue a série "Ser pai, ser filho", que integra o livro Luta+vã, com esse poema curto. A cena retratada é verídica, e com certeza familiar a muitos senão todos os meus amigos músicos: quem não tocou ou cantou para as crianças dormirem?
Reparem que o retrato doméstico, que inicia naquele clima de pai herói e protetor, termina na reflexão existencial, provocada pelo múltiplo sentido dos dois versos finais, onde "meu turno" é não só essa hora indefinida de uma noite qualquer, mas também o tempo tão bom de criar os filhos, que um dia se acaba; ou a duração total da minha vida. Eis o motivo pelo qual gosto tanto deste poema singelo.

Sentado à porta
do quarto delas
eu conto histórias.

Armado apenas
de um violão,
eu monto guarda
contra os fantasmas,
que às vezes vêm
de não-sei-onde.

Passada a noite,
terão sumido.
Meu turno findo,
irei também. 

segunda-feira, 8 de agosto de 2016

Pais, filhos, etc.

Já em clima de Dia dos Pais, o poema desta semana faz parte de um conjunto intitulado "Ser pai, ser filho", incluído em meu último livro, Luta+vã (Libretos, 2012). Na próxima postagem, darei sequência ao tema.

I.
A mão de meu pai sobre meu ombro
magro, a um tempo conforto e aviso:
– Segue por essa rota, filho,
ou com certeza irás cair!

Cair, no caso: mera obrigação
de menino que se preza.
Quando caio, cumpre-se a Justiça
de Deus; cai de meus ombros o peso
do pecado, e da boca do pai
a frase, feito pedra, cai:
– Bem que eu avisei!

E passo assim em quedas a vida,
sucessivas, cada vez mais altas,
mas todas muito bem previstas.
(E até, alguma vez,... desejadas?)

quarta-feira, 27 de julho de 2016

Voltando do Cerrado, com música

Esta semana o poema sai com atraso, devido a umas merecidas, embora curtas, férias do autor. De volta de um passeio pela Chapada dos Veadeiros, que incluiu visitas às cidades goianas históricas de Pirenópolis e Goiás, lembrei-me da inspiradora visita que fiz àquele Estado em 2009, que rendeu um dos (que considero) meus melhores poemas, que se chamou justamente "Cerrado", o bioma característico daquela região. Palavra que aqui, como de costume, reúne também outros sentidos. Quem ler o poema em voz alta vai perceber que a sonoridade peculiar provém do uso de palavras com "a" aberto, recurso conhecido como aliteração.
Por uma feliz coincidência, na mesma época conheci um talentoso pianista e compositor, que a transformou numa linda canção, gravada por ele com a cantora Ana Luiza e o guitarrista Natan Marques, no disco Entrelaço.

Cerrado


Não há sinal de cais
Mas tudo me acalma
No seu olhar
(Tavinho Moura / Márcio Borges) 

Luz de alvorada,
Serena paira a voz,
presença clara.

Desmaia a tarde.
Teus olhos bailam
entre a fumaça e a amplidão,
onde minha alma embarca.

Já noite alta, eu perco a graça.
Por mais que pese
cada palavra,
a frase exata falha.

Sou nau pirata, que vaga 
na madrugada.
Não há sinal de calma.

A chuva caia, compartilhada:
os olhos rasos d´água:
são as migalhas que terei do mar.

domingo, 17 de julho de 2016

Tragédias, filmes, poemas: adeus a Babenco

O cartaz do filme de Babenco
Esta semana o Brasil perdeu seu grande diretor argentino (de nascimento, só pra sacanear, mas se naturalizou brasileiro), Hector Babenco, sujeito que não fazia filmes só pra encher linguiça. Era dedo na ferida direto. Meu filme preferido dele é Brincando nos campos do Senhor, ambicioso fracasso de bilheteria. Mas seu maior sucesso foi Carandiru. Em sua memória, deixo aqui este poema do meu livro Dança das Palavras (1998), inspirado na mesma tragédia, ocorrida em 2 de outubro de 1992, mas tristemente atual ainda neste novo milênio.


CARANDIRU

São cento e onze cadáveres
alinhados como latas
de sardinha na gôndola
do supermercado.

Quase todos quase-pretos
que nunca mais serão pobres,
redimidos a mordidas
de cães e tiros na nuca.

Enfim salvos da prisão
perpétua em que nasceram
todos, da luta sem fim
pra ser-brasileiro.

Cento e onze deputados,
enquanto isso, negociam
seus votos, almas e sonhos
de algum futuro.

E em cada esquife carregam
algo de nós. — Eu deliro:
num, julgo ver Tiradentes;
noutro vai Pedro Primeiro;

num terceiro, Bonifácio.
Chico Mendes, Guimarães,
Prestes e Simon Bolívar,
José Martí, Che Guevara...

Cada um morrerá um pouco
mais a cada dia destes,
em que um Estado se expresse
em tiros na nuca e dentes
de cães amestrados
(porém comandados
por homens selvagens).

(Pensando bem, os selvagens
de verdade nada ganham
na comparação equívoca.
Esses homens também são
amestrados, a seu modo.)