domingo, 8 de janeiro de 2017

Um Poema de Ano Novo

E para esse ano novo, em que vamos entrando e nos aquerenciando assim, meio desconfiados, teria de ser naturalmente um poema também novo, quase um recém-nascido...

Poema de Ano Novo


Quem nunca viu uma criança
que acaba de aprender a andar
e avista o mar, e ao mar se lança?

E vem correndo, a despencar,
aos trancos, sem nenhum cuidado,
buscando o mar, buscando o mar.

Assim, suponho, eu deveria
precipitar-me rumo ao novo,
sem medo, com ar de maravilha.

(Penso cá comigo, entretanto:
alguém tem que impedir que a pobre
acabe por descuido se afogando.)


sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Poema de Natal ao meu amigo

Noutro 30 de dezembro, há três anos, publiquei no meu perfil do Facebook um poema em homenagem ao poeta e professor Eduardo Dall'Alba, então recentemente falecido, com quem eu compartilhei, além da poesia, a condição de filho pobre das colônias, tenor do Coral da UFRGS e ex-morador de uma certa casa de estudantes. O poema, dedicado em vida ao meu amigo, tinha saído em Luta+Vã (Libretos, 2012). Parte da inspiração vem da leitura de seu livro, parte dos sentimentos contraditórios de um pai assistindo aquelas apresentações natalinas na escola dos filhos. Segue aqui, com umas pequenas alterações que andei fazendo.

Poema de Natal ao meu amigo 


Caro poeta, meu amigo,
chegou até mim seu livro
luminoso, dolorido
de poucos adjetivos.

Aqui na Capital o recebi,
e quis o acaso que fosse Natal.
(Ao fundo, aquela música ordinária...)

O ano acaba, mas não os desejos.
O que vem é novo, mas nós não somos.
Mede-se o tempo, mas não a vida.

Teu livro não foi pra estante:
demora-se entre brinquedos...

E algo vai passando
ali, nesse canto:
poemas, brinquedos...
(Não somos, acaso,
leitor e poeta,
mais que uns meninos?)

Lá estão, de folha em folha,
o gozo, a dor, a arte
nas cenas de infância,
com pouca tinta e muito sentido.

A tarde era cinza,
o inverno duro,
gotas na vidraça,
mansas como facas.

Visitava-nos a ausência:
de luxo ou roupas quentes,
de afeto ou sobremesa,
da distância, de outros ares.

E quando o sol ofuscava,
havia todo um mundo a construir
com barro, tábua, cascalho.
Um povo só de adultos labutava,
sem olhos para o inútil,
sem tempo de brincar.

Mas é Natal, e enquanto leio,
nas escolas e anúncios da TV,
crianças inocentes,
para gáudio de seus pais,
manejam signos pra nos comover.

Mas não, conosco não.
De costas, sentados,
temos mais porque chorar.
Nenhum cálice é pra nós sagrado.

Ao fundo! - Pelo avesso!
Não é isso o que eu sinto,
e sim outra cousa!
E atrás dessa há outra ainda!

Fez-se verbo Deus?
Pois é nosso o verbo.
Quanto tempo nele
temos habitado?

Fez-se verbo Deus?
Não, que o verbo é coisa
antiga e sem apelo.
Hoje Ele é imagem
3-D, Dolby Digital
e efeitos especiais.

Fez-se o verbo carne?
Pois que doa então,
que da carne é próprio
doer e do verbo
dizer.

sábado, 26 de novembro de 2016

A revolução das bicicletas

Foto de Fernando Gomes/Agência RBS (maio 2012)
Semana passada, estive ocupado escrevendo outra coisa, ensaiando pra tocar numa festa hoje... e acabei deixando os ávidos leitores deste sem poema novo.

Por sorte (ou azar?), assunto é que não falta, com tanta coisa acontecendo no mundo lá fora. Tivemos o Dia da Bandeira, o Dia do Músico, a Black Friday, o Sol entrou em Sagitário, Fidel acaba de morrer... Mas uma notícia boa, entre tantas ruins, merece uma atenção especial. Por isso escolhi este poema, escrito há cinco anos, sob o impacto do tristemente célebre atropelamento coletivo de ciclistas, acontecido aqui. A notícia boa? Foi a condenação do atropelador, esta semana, a mais de doze anos de prisão.

O poema acabou incluído em uma série intitulada "A Cidade Adversa", que reúne impressões sobre distintas cenas porto-alegrenses, que acumulo na retina há mais de 30 anos. Estão no livro Luta+vã (Libretos, 2012).


Heróis

O herói de agora
é um cavaleiro,
mas sem cavalo.
Não é soldado,
foge da guerra.
Não tem linhagem,
mas tem história.
Não voa alto,
antes navega,
canta e namora
sem pressa alguma.
Suave e ligeiro,
invade as ruas
dessa cidade.

O herói presente
olha o futuro.
Quer natureza
no cotidiano,
quer seu planeta
azul e verde,
em paz e humano,
mais do que tudo.
No caos do trânsito
segue, valente,
armado apenas
do seu encanto.

O herói que admiro
enxerga longe,
detrás dos vidros
das armaduras,
onde se escondem
velhos instintos
bem conhecidos.
No seu caminho,
a todo instante,
poças de sangue
e sepulturas
no meio-fio.

O herói do dia
– melhor dizendo
– a heroína
é feminina.
Boa de briga,
despreza os carros
e a gasolina.
Vestindo saia,
carrega flores
dores no peito,
sorriso doce
acena e passa...

numa bicicleta cor-de-rosa

segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Viajando no tempo e na cidade

O Viaduto Otávio Rocha, em Porto Alegre, fotografado em
1933 por Jacob Prudêncio Herrmann.
Aproveitando a passagem do Dia Mundial do Urbanismo, no último dia 8, publico hoje esse singelo e antigo poema. Uma primeira versão, sem título, saiu no meu livro de estreia, Viagens de uma Caneta por meus Estados de Espírito (1992), e cheguei a musicá-lo, mas o resultado não ficou lá essas coisas. Recentemente, dei uma mexida nos metros e rimas, resultando no que está aí.

Foi inspirada por uma caminhada, daquelas boas, sem rumo e sem preocupações, pelo centro de Porto Alegre, nos longínquos anos de 1980, na companhia do amigo Rômulo Giralt. (Não posso garantir, mas é possível que estivéssemos sob efeito de alguma substância, mas isso é irrelevante.)

O Rômulo (que por acaso está de aniversário por estes dias, merecendo portanto a homenagem) viria mais tarde a se tornar arquiteto e professor universitário, mas já sabia muito mais sobre a história da sua cidade natal do que eu. Por esse motivo, o poema do livro está dedicado a ele.

Também utilizei os primeiros quatro versos (com uma pequena variação no terceiro) como um texto incidental falado, na introdução da canção (dele e do Mário Humberto) "Andarilho Noturno", no meu CD Trem da Utopia (2011). Clique aqui para ouvir.

Passeio n° 5

Caminhamos na chuva rala
Nossos sapatos deixam marcas
Na calçada, por entre os prédios
Que teimamos em chamar belos

Tão jovens na idade, os corações velhos...
Que vai ser de nós, quando nossos netos
Sentirem saudades, não de antigas casas,
Não da vida calma, mas desse concreto?

sexta-feira, 28 de outubro de 2016

Os funcionários também amam

... E o poema desta semana vai dedicado ao funcionalismo público, esse herói e vilão, admirado e odiado, cuja data comemoramos hoje. Como em muitas outras ocasiões, foi inspirado num fato cotidiano, a partir do singelo espanto causado pela irrupção da poesia em meio a uma visita prosaica a uma repartição pública.

Faz parte do meu terceiro livro, Dança das Palavras (Instituto Estadual do Livro, 1998)

Recomendo ler em voz alta, para melhor sentir o ritmo.


PASSAPORTES


A agente da Polícia Federal
que expede documentos de viagem
encontra-se entediada esta manhã.
Talvez por isso mesmo ela debruça
os olhos sobre um verso de Camões.

Na velha escrivaninha então se passam
as doudas aventuras que esta vida
negou-lhe por haver nascido tarde,
ou cedo; ou num país desventurado;
ou que ela mesma evita, quando pode.

E é justo esse momento de tamanho
encanto, que eu estrago quando chego
querendo renovar meu passaporte.

Só resta a mim voltar daqui dois dias
— é o prazo em que se apronta o documento,
e dar-lhe de presente este poema.