quinta-feira, 30 de abril de 2020

E daí? - Disse o tirano


“E daí?” – Disse o tirano
infeliz que as circunstâncias
conduziram ao comando
de um povo cheio de esperança.

“E daí?” – Repetiu ele
às câmeras, sorridente,
quando, na floresta, o incêndio
tornava-se corriqueiro.

“E daí? Morreram poucos.”
- Opinava – “No Brasil,
faltou matar tantos outros.
Pelo menos, trinta mil.”

“E daí se com os radares
que eu mandei desativar
vão morrer alguns milhares
a mais?” - Nem vou comentar.

“E daí?” – Se alguém achava
que era suspeito ou estranho
ter amigos milicianos,
era a resposta que dava.

“E daí se eu vou pra rua
e pego uma gripezinha?
Eu cuido da minha família,
cada um cuide da sua.”

“E daí se aquele avião
que me levou pra Miami
numa nefasta excursão
trouxe do vírus um enxame?”

“E daí?” – Dizia ele,
quando alguém lhe perguntava
dos milhares de doentes
e corpos que se empilhavam.

“E daí?” – Só repetia,
sem sombra de algum respeito,
quem com a mão faz arminha
e alega não ser coveiro.

“E daí?” virou bordão
na boca do presidente.
Se já faltava caixão,
não ia ser culpa dele;

e sim dos governadores,
dos prefeitos, dos chineses,
dos vermelhos traidores,
dos que não votaram nele...
Ou quem sabe do ministro,
querendo ofuscar seu brilho?

“E daí?” – Dizia à toa.
Mais aflito parecia
com os dados da economia
e as próximas eleições,
em dois mil e vinte e dois,
que com a vida das pessoas. 

“E daí?” – Dirá, por fim,
ao ouvir sua sentença,
depois do Juízo Final,
ao demônio que o receba –
“Em casa vou-me sentir,
o inferno não é tão mau."


terça-feira, 17 de março de 2020

Tempo dançarino


https://issuu.com/motus-unipampa/docs/motus3
Clique na imagem para ler a antologia

Com alguns meses de atraso, registro a publicação do meu poema "Tempo Dançarino" na antologia Motus #3. A publicação, em formato digital, é resultado de um projeto de extensão da Universidade Federal do Pampa (Unipampa), coordenado pela professora Aline Viera de Mello.


Em sua terceira edição, a antologia Motus teve como tema “O Tempo” e recebeu inscrições de autores residentes em diferentes estados brasileiros e no exterior (Canadá, Estados Unidos, Itália, Japão, Moçambique e Portugal). Dez poemas e dez contos foram selecionados através de concurso literário, e um poema escrito de forma colaborativa por estudantes do nono ano com apoio de duas professoras, resultado da ação Motus na Escola Estadual Dr. Romário Araújo de Oliveira – CIEP (Alegrete). Cada obra é acompanhada por uma ilustração da artista Amanda Gobus Lopes.


O poema parte do ponto de vista do narrador que vê alguém dançar em plena rua, mas vai aos poucos descolando da realidade, rumo ao sonho, numa espécie de transe que a dança é capaz de criar. Ei-lo:


Tempo dançarino

O livro teve lançamento na Feira do Livro de Porto Alegre

Ali, no Largo que, outrora,
chamou-se o Largo do Império
(Império que já não há),
sobre a pedra portuguesa,
em noite fria de Inverno,
sob a luz da lua cheia,
se não me falha a memória,
eu vi um homem dançar.

Eu vi dançar esse homem
(ou mulher, até nem sei),
lembro como fosse ontem.
Nada mais não se movia,
sobre o asfalto a ferver,
sob o sol do meio-dia.

E enquanto ele ali dançasse,
não havia gravidade.
Bomba do céu não caía,
já não matava a polícia
e o campo, só, de batalha,
era o corpo que bailava.

Menino sem mãe nem pai,
pegou a sorrir de graça,
e até foi visto a cantar,
enquanto o homem dançava,
veloz como a nuvem alta,
com seu passo cai-não-cai,

Era a multidão de pobres
que seguia o Nazareno?
Poema de Maiakóvski,
pelos pés da bailarina?
Ou o Exército Vermelho
dançando o mapa da China?

Eu era uma parte dele
e ele era um meu pedaço,
feito o beato e seu crente.
O que eu fiz de certo e errado,
passo futuro e passado:
tudo eu via, de repente.

Tão depressa se movia,
que eu a ver não alcançava
a sua fisionomia.
E sem sombra de cansaço,
preenchia todo o espaço,
só com o gesto, sem mais nada.

Não sei que dança era aquela.
Um Tango, sei que não era,
nem era o praieiro Coco,
tampouco nobre Minueto.
Da Catira, tinha um pouco,
talvez do Samba um meneio...

Chapéu ele não usava,
de gaúcho ou de vaqueiro,
nem do boi a fantasia.
Não vi nenhum pau-de-fita.
Não se ouvia som de gaita,
nem berimbau ou pandeiro.

O tempo virou história,
a vida em volta girava,
cada um com seu destino,
cada qual na sua rota,
o mundo em tal desalinho,
e esse homem só... dançava.

E eu quis dançar com as palavras,
trocando os pés pelas rimas.
O homem já não dançava,
caía uma chuva fina:
só a memória da sua graça,
feito fumaça, subia.

Caminhar com mais leveza,
no entretanto desses tempos
em que eu sem querer nasci;
carregar um mundo inteiro
e conservar a cabeça
erguida e a espinha ereta:
foi ali que eu aprendi
meu ofício de poeta.


sábado, 22 de fevereiro de 2020

A poesia me persegue em Santa Catarina


Nas últimas férias de Inverno, viajei com a família pelo interior de Santa Catarina. Costumo aproveitar esses períodos para escrever poesia, ou mais especificamente, para terminar poemas que vou rascunhando no meu caderno, onde costumo deixá-los amadurecer, às vezes por anos (e os piores, pra sempre). A poesia, porém, não costuma interferir no itinerário da viagem. Desta vez, no entanto, ela apareceu de surpresa no caminho, tornando tudo mais interessante.

Na simpática cidade de Timbó, encontrei a Casa do Poeta Lindof Bell, (1938-1998) de quem nunca tinha ouvido falar. A casa simples, onde ele viveu a infância, e que ficava então à beira de um regato, quase no meio do mato, abriga hoje seu acervo. Bell militava por uma poesia ao alcance do grande público, para ser lida em voz alta, e era também artista plástico. O poema abaixo, tirado da antologia cuja capa reproduzo (Global editora, 2009, p. 219), dá conta de sua atualidade.


Poema para o índio Xokleng

Se um índio xokleng
subjaz
no teu crime branco
limpo depois de lavar as mãos

Se a terra
de um índio xokleng
alimenta teu gado
que alimenta teu grito
de obediência ou morte

Se um índio xokleng
dorme sob a terra
que arrancaste debaixo de seus pés
sob a mira de tua espingarda
dentro de teus belos olhos azuis

Se um índio xokleng
emudeceu entre castanhas, bagas e conchas de seus colares de festa
graças a tua força, armadilha, raça:
cala a tua boca de vaidades
e lembra-te de tua raiva, ambição, crueldade

Veste a carapuça
e ensina teu filho
mais que a verdade camuflada
nos livros de história.

* * *


Capa da ed. original (1878)

Na cidade de Treze Tílias, outra surpresa deu-se ao conhecer a origem do seu nome. Eu já sabia que a tília é uma árvore, e tinha ouvido falar o nome da cidade em alemão, Dreizehn Linden. O que eu não sabia é que este é o título de um poema épico do médico e político Friedrich Wilhelm Weber (1813-1894), nascido na Westfália, obra muito popular na Áustria e Alemanha, até o início do século XX. Segundo ouvi contar, ao chegar ao Rio de Janeiro, liderando um grupo de colonos tiroleses que viriam fundar a cidade, em 1933, o ministro austríaco Andreas Thaler procurava um mapa da região numa livraria, quando deparou-se com esse livro. Talvez com saudade da terra natal, talvez por acreditar em coincidências significativas, comprou-o e, ao chegar ao seu destino, decidiu batizar assim a localidade.

Uma alegria para os poetas, sem dúvida, que um livro de poesia tenha dado nome a uma cidade. A má notícia é que não pude encontrar, nem na cidade, nem na Internet, uma edição do livro em português. (Se o leitor souber, por favor me avise). Por enquanto, teremos de nos contentar com os pequenos trechos (início e fim do livro), traduzidos por Wieland Lickfeld em seu blog. Ainda que a ação se passe no século IX, durante as lutas entre francos (cristãos) e saxões (pagãos), também esta obra parece digna de interesse na atualidade, ao evidenciar "a contradição existente entre a ação guerreira dos invasores e a mensagem de paz cristã que supostamente deveriam propagar."

Wonnig ist's, in Frühlingstagen,
Nach dem Wanderstab zu greifen,
Und, den Blumenstrauss am Hute,
Gottes Garten zu durchschweifen..."


"Como é bom, durante a primavera
Lançar mão do bastão de caminhada,
E, com flores o chapéu a ornamentar
Pelo Jardim de Deus poder vaguear...

[...]

Helf' uns Gott den Weg zur Heimat
Aus dem Erdenelend finden.
Betet für den armen Schreiber,
Schließt der Sang von Dreizehnlinden!
"

"O caminho da Pátria ajude-nos Deus
Em meio à miséria terrena encontrar.
Rezem pelo pobre escritor,
Termina o canto de Treze Tílias!"