quarta-feira, 27 de julho de 2016

Voltando do Cerrado, com música

Esta semana o poema sai com atraso, devido a umas merecidas, embora curtas, férias do autor. De volta de um passeio pela Chapada dos Veadeiros, que incluiu visitas às cidades goianas históricas de Pirenópolis e Goiás, lembrei-me da inspiradora visita que fiz àquele Estado em 2009, que rendeu um dos (que considero) meus melhores poemas, que se chamou justamente "Cerrado", o bioma característico daquela região. Palavra que aqui, como de costume, reúne também outros sentidos. Quem ler o poema em voz alta vai perceber que a sonoridade peculiar provém do uso de palavras com "a" aberto, recurso conhecido como aliteração.
Por uma feliz coincidência, na mesma época conheci um talentoso pianista e compositor, que a transformou numa linda canção, gravada por ele com a cantora Ana Luiza e o guitarrista Natan Marques, no disco Entrelaço.

Cerrado


Não há sinal de cais
Mas tudo me acalma
No seu olhar
(Tavinho Moura / Márcio Borges) 

Luz de alvorada,
Serena paira a voz,
presença clara.

Desmaia a tarde.
Teus olhos bailam
entre a fumaça e a amplidão,
onde minha alma embarca.

Já noite alta, eu perco a graça.
Por mais que pese
cada palavra,
a frase exata falha.

Sou nau pirata, que vaga 
na madrugada.
Não há sinal de calma.

A chuva caia, compartilhada:
os olhos rasos d´água:
são as migalhas que terei do mar.

domingo, 17 de julho de 2016

Tragédias, filmes, poemas: adeus a Babenco

O cartaz do filme de Babenco
Esta semana o Brasil perdeu seu grande diretor argentino (de nascimento, só pra sacanear, mas se naturalizou brasileiro), Hector Babenco, sujeito que não fazia filmes só pra encher linguiça. Era dedo na ferida direto. Meu filme preferido dele é Brincando nos campos do Senhor, ambicioso fracasso de bilheteria. Mas seu maior sucesso foi Carandiru. Em sua memória, deixo aqui este poema do meu livro Dança das Palavras (1998), inspirado na mesma tragédia, ocorrida em 2 de outubro de 1992, mas tristemente atual ainda neste novo milênio.


CARANDIRU

São cento e onze cadáveres
alinhados como latas
de sardinha na gôndola
do supermercado.

Quase todos quase-pretos
que nunca mais serão pobres,
redimidos a mordidas
de cães e tiros na nuca.

Enfim salvos da prisão
perpétua em que nasceram
todos, da luta sem fim
pra ser-brasileiro.

Cento e onze deputados,
enquanto isso, negociam
seus votos, almas e sonhos
de algum futuro.

E em cada esquife carregam
algo de nós. — Eu deliro:
num, julgo ver Tiradentes;
noutro vai Pedro Primeiro;

num terceiro, Bonifácio.
Chico Mendes, Guimarães,
Prestes e Simon Bolívar,
José Martí, Che Guevara...

Cada um morrerá um pouco
mais a cada dia destes,
em que um Estado se expresse
em tiros na nuca e dentes
de cães amestrados
(porém comandados
por homens selvagens).

(Pensando bem, os selvagens
de verdade nada ganham
na comparação equívoca.
Esses homens também são
amestrados, a seu modo.)

sábado, 9 de julho de 2016

Um dia inesquecível

Foto de Tuti Flores
A semana que passou trouxe à lembrança um dia de fortes emoções, o 6 de julho de 2013. Lá estava eu, no Centro Cultural CEEE Érico Veríssimo, todo faceiro, recebendo o prêmio de "livro do ano" da Associação Gaúcha de Escritores, por meu quinto livro de poesia, Luta+vã (Ed. Libretos, 2012). O livro teve curadoria do Ronald Augusto, que selecionou poemas de meus três primeiros livros, além de um punhado de inéditos (entre os quais o que está reproduzido abaixo, e que abre o livro).

Já seria um dia inesquecível, claro, mas antes fosse só por isso. Acontece que, enquanto rolava a confraternização, a poucos metros dali o Mercado Público pegava fogo. A sala do Memorial do Mercado, onde eu trabalhava desde 2010, ficou completamente destruída. Na foto ao lado dá para ver o que sobrou da pequena mas valorosa biblioteca sobre gestão e políticas culturais, que eu vinha amealhando pacientemente ao longo dos últimos anos, e que trouxera de casa por falta de espaço.

Um dia e tanto, não?

Con anima

Que posso eu cantar de novo?
Salomão já fez os cânticos.
E o Outono, entretanto,
vem cobrando seu tributo:
quer sempre mais e mais frutos.

Sei que o Inverno já vem,
futuro exato, esperado.
Mas eis que brota, entre as pedras,
a mais teimosa das ervas
que nem a neve contém.

E tu, Primavera fresca,
vens inaugurar o espanto
e erguer, com ares de anjo,
novo castelo de vento
sobre as pedras da represa,

em cujas águas contidas
eu me vou banhar agora,
pois é Verão. Quem se importa
se haverá outros ou não,
se é de ti que sopra a vida?

segunda-feira, 4 de julho de 2016

Um requiem para Ulysses

O poema desta semana sai com algum atraso. Não é que falte material, mas a intenção de publicar com regularidade esbarra na falta de disciplina do autor, que ademais não tem o hábito jornalístico. Assim, depois de comemorar algumas efemérides (aniversário do lançamento de livros, dia das mães, etc.), comecei a me sentir atado por elas. Deu branco. Ia sortear um poema ao acaso, até que ontem, assistindo TV, me deparei com um documentário sobre Ulysses Guimarães, que faria 100 anos no próximo dia 6 de outubro (tá meio longe ainda, mas vá lá), cujo fantasma certamente assombra os pesadelos de certas lideranças fisiológicas de seu partido hoje em dia. Pois fui folhear meu livro O Primeiro Anel (1996) e não é que tinha lá um poema dedicado a ele?
Não é exatamente uma homenagem ao "Senhor Diretas", de quem não cheguei a ser um fã, embora seja impossível não ter saudades dele diante da deterioração de nossa classe política. É antes uma reflexão provocada pela enxurrada de elogios ouvidos (somente) após sua morte e também, é claro, pelo seu peculiar e poético desaparecimento, no mar e sem deixar vestígios.
Aproveito para homenagear também meu caro amigo Irno Lenz, que há exatamente um ano partia, deixando também para todos que o conheceram seu exemplo de luta e integridade.

REQUIEM IV

para Ulysses Guimarães
Morresse hoje, e seria
santo e sábio e bom
e forte como só aqueles
— os que se foram — é que sabem
ser, agora que não são mais.

Morresse hoje eu, e sobre
a tumba em abundância correriam
lágrimas de quem me desprezava.
(e para que correriam hoje,
lágrimasque em vão tentei
arrancar com versos, cartas,
promessas, súplicas e ameaças
de strip-tease?)

Morresse hoje eu, de repente,
e afinal saberiam todos
que me amavam, e eram todos
por mim amados: de um só golpe
saberiam todos, com certeza.

Nuvens que pairavam entre nós
se desfariam, e tudo estaria claro.
Agora saberiam, e agora
seria como sempre havia sido,
exceto por uma coisa:
seria tarde.

Morresse hoje eu, e encontrasses
tu, meu amigo, em minha estante,
estes versos cheios de presságio
e julgarias enfim que me compreendes,
agora sim; que sou sublime,
agora que, de fato,
já nada sou.

(Mas teria valido a pena,
ao menos, o tempo gasto
em escrevê-los...)

Morresse hoje, e os demais
habitantes do planeta,
esses bilhões de seres estranhos
(para não falar das pedras
do calçamento e do restante
do universo) nada sentiriam.


Isto é o que no fim das contas me consolará.