segunda-feira, 16 de agosto de 2021

Operita Violoncello: a poesia sobe ao palco

Na foto de Cláudio Etges, da esq. p/dir: Pâmela Mânica, Raul Voges, 
Ângela Diel, Daniel Germano e Janaína Nocchi.

Ainda maravilhado, mais de um mês após a estreia da Operita Violoncello, eu finalmente registro o acontecimento neste blog. Foi um lindo espetáculo, encenado com grande apuro técnico por uma equipe de primeira, da qual tive a felicidade de participar como libretista. 

O evento marcou a reabertura do Teatro São Pedro para espetáculos de produção privada (após dois eventos realizados pela própria administração). A lotação foi limitada a 1/3 da capacidade total.

Essa história começou lá no final de 2018, quando o diretor Décio Antunes - que havia lido meu poema dramático A aposta dos deuses (publicado em livro em 2007) me indicou para um projeto do compositor, violinista e regente Arthur Barboza e da cantora e produtora Ângela Diel. A partir de uma ideia central do Arthur e de alguns poemas de Florbela Espanca que ele já começara a musicar, fui encarregado de desenvolver um enredo. No jargão operístico, um "libreto", que vem a ser simplesmente o texto, a dramaturgia da ópera. Ou opereta, no caso, porque dura menos de uma hora, num único ato. A música é executada ao vivo, por uma pequena orquestra de violoncelos.

O argumento gira em torno de um triângulo amoroso entre a célebre violoncelista Maria (a cantora Ângela Diel); o galante Juan (o cantor Daniel Germano); e um violoncelo ciumento que adquire vida (o bailarino e coreógrafo Raul Voges). Completam o elenco duas bailarinas, que representam alter egos de Maria (Janaína Nocchi e Pâmela Mânica).

Em agosto de 2019, depois de algumas idas e vindas entre mim e o Arthur (com contribuições da diretora Jaqueline Pinzón, incorporada à equipe), o texto foi dado como pronto. O grupo foi crescendo, os ensaios começaram e a estreia foi marcada para abril de 2020, no Teatro São Pedro. Então veio aquilo que vocês sabem. Daí pra frente foi uma larga espera, que só acabou dia 13 de julho de 2021. Foram só quatro apresentações, por enquanto, mas certamente haverá outras.

Enquanto isso, para quem não pode assistir, adianto a letra de uma das canções, um dueto entre os personagens Juan e Maria. De todo o libreto, essa é a única canção da qual eu já tinha escrito uma versão, que após adaptada acabou servindo bem a propósito para o enredo. Arthur a transformou em um tango, e Jaqueline a colocou numa cena de baile.

JUAN
Há um instante na paixão
Quando ainda não falei
E o que vou falar, nem sei
Só imagino o sim ou o não
 
MARIA
Há na paixão um instante
Que vai passar sem demora
Que pode levar meia hora
Que nunca dura o bastante
 
JUAN
Há um instante na paixão
- Quem sabe o melhor de todos?
O presente cheira a novo
E o futuro é multidão
 
MARIA
Há na paixão um momento
Que é gostoso prolongar
Que vem antes de se dar
Aquele passo primeiro...
 
JUAN E MARIA
... Rumo ao coração do outro
Antes do primeiro desencontro.
O melhor do amor é essa vertigem
Não saber ao certo em que vai dar
Por mais que eu imagine
O prazer maior é imaginar




segunda-feira, 9 de agosto de 2021

A morte do tirano (poema inédito)

Semana passada, a Biblioteca Pública Castro Alves, de Bento Gonçalves, divulgou o resultado de seu primeiro concurso de poesia. Foram 765 inscrições, vindas de todos os estados brasileiros, nas categorias infantil, juvenil e adulto.

Meu poema "A morte do tirano" foi um dos que receberam menção honrosa. Todos os textos premiados estão reunidos num e-book.

Para os leitores do blog, adianto aqui o poema, até então inédito. Ele começou a ser esboçado em novembro de 2015, recebendo cortes e acréscimos em 2016, 2018 e 2020, até chegar à versão final (por enquanto), enviada ao concurso em abril deste ano.

A Morte do Tirano

Quando morreu o Tirano,
pode ser que alguém duvide,
mas eu lhes digo e garanto:
muita gente ficou triste.
 
Pai dos mortos dos vivos,
atentos olhos e ouvidos
a nos proteger do mal,
onde o mal fosse brotar.
 
Mal que tinha muitas caras
invisíveis e sem nome:
era preciso nomeá-las
mantê-las sob seu controle.
 
(O bem tinha um nome só,
que vivíamos recitando
até sabermos de cor:
era o mesmo do Tirano.)
 
O mal que nos ameaçasse,
era feito uma neblina,
mal discreto, que sabia
disfarçar-se de beleza.
 
Mas não podia enganar
o nosso supremo líder,
com o seu faro infalível
e o seu penetrante olhar.
 
Muita gente foi expurgada
dos empregos, das famílias,
expulsos das próprias casas
saqueadas pelas milícias.
 
Silenciados, os artistas
(seus piores inimigos)
foram presos ou banidos;
suas obras, proibidas.
 
Houve os que se revoltaram:
seus corpos, despedaçados,
foram expostos no alto
dos postes, muros, fachadas...
 
Devorados, sem demora,
por corvos, lobos e ratos,
com eles foi-se a revolta,
da qual ficamos curados.
 
E pra que o peso excessivo
da culpa pelas maldades
que o Tirano cometera
de pronto não o esmagasse,
nós com ele o dividimos,
aliviando sua consciência.
 
Quem, outrora, a cavalgar
sobre os corpos dos vencidos,
em incontáveis batalhas,
grande alegria encontrava,
ora de pena era digno;
pois de uns tempos para cá,
já não era mais que a sombra,
o tirano, do que fora.
 
Esses mortos, ele os via
como se estivessem vivos,
quais minúsculas formigas,
no açucareiro de prata
que lhe trazia a criada
pra adoçar o chá das cinco.
 
E o medo, seu grande aliado
voltou-se contra ele mesmo,
passando a ser costumeiro
conviva, sempre a seu lado.
 
E ao ver no esquife o seu corpo
receber tais homenagens
(agora, que estava morto,
ainda mais altas que em vida),
ninguém imaginaria
que ele era tão covarde.
 
Pois o Tirano, eu garanto
(e isso era dele segredo,
que ninguém ficou sabendo),
senhor da morte e da vida,
dono de léguas de campo,
com tudo que havia em cima,
tendo aos pés o mundo inteiro,
não foi senhor de si mesmo.