sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Poema de Natal ao meu amigo

Noutro 30 de dezembro, há três anos, publiquei no meu perfil do Facebook um poema em homenagem ao poeta e professor Eduardo Dall'Alba, então recentemente falecido, com quem eu compartilhei, além da poesia, a condição de filho pobre das colônias, tenor do Coral da UFRGS e ex-morador de uma certa casa de estudantes. O poema, dedicado em vida ao meu amigo, tinha saído em Luta+Vã (Libretos, 2012). Parte da inspiração vem da leitura de seu livro, parte dos sentimentos contraditórios de um pai assistindo aquelas apresentações natalinas na escola dos filhos. Segue aqui, com umas pequenas alterações que andei fazendo.

Poema de Natal ao meu amigo 


Caro poeta, meu amigo,
chegou até mim seu livro
luminoso, dolorido
de poucos adjetivos.

Aqui na Capital o recebi,
e quis o acaso que fosse Natal.
(Ao fundo, aquela música ordinária...)

O ano acaba, mas não os desejos.
O que vem é novo, mas nós não somos.
Mede-se o tempo, mas não a vida.

Teu livro não foi pra estante:
demora-se entre brinquedos...

E algo vai passando
ali, nesse canto:
poemas, brinquedos...
(Não somos, acaso,
leitor e poeta,
mais que uns meninos?)

Lá estão, de folha em folha,
o gozo, a dor, a arte
nas cenas de infância,
com pouca tinta e muito sentido.

A tarde era cinza,
o inverno duro,
gotas na vidraça,
mansas como facas.

Visitava-nos a ausência:
de luxo ou roupas quentes,
de afeto ou sobremesa,
da distância, de outros ares.

E quando o sol ofuscava,
havia todo um mundo a construir
com barro, tábua, cascalho.
Um povo só de adultos labutava,
sem olhos para o inútil,
sem tempo de brincar.

Mas é Natal, e enquanto leio,
nas escolas e anúncios da TV,
crianças inocentes,
para gáudio de seus pais,
manejam signos pra nos comover.

Mas não, conosco não.
De costas, sentados,
temos mais porque chorar.
Nenhum cálice é pra nós sagrado.

Ao fundo! - Pelo avesso!
Não é isso o que eu sinto,
e sim outra cousa!
E atrás dessa há outra ainda!

Fez-se verbo Deus?
Pois é nosso o verbo.
Quanto tempo nele
temos habitado?

Fez-se verbo Deus?
Não, que o verbo é coisa
antiga e sem apelo.
Hoje Ele é imagem
3-D, Dolby Digital
e efeitos especiais.

Fez-se o verbo carne?
Pois que doa então,
que da carne é próprio
doer e do verbo
dizer.

sábado, 26 de novembro de 2016

A revolução das bicicletas

Foto de Fernando Gomes/Agência RBS (maio 2012)
Semana passada, estive ocupado escrevendo outra coisa, ensaiando pra tocar numa festa hoje... e acabei deixando os ávidos leitores deste sem poema novo.

Por sorte (ou azar?), assunto é que não falta, com tanta coisa acontecendo no mundo lá fora. Tivemos o Dia da Bandeira, o Dia do Músico, a Black Friday, o Sol entrou em Sagitário, Fidel acaba de morrer... Mas uma notícia boa, entre tantas ruins, merece uma atenção especial. Por isso escolhi este poema, escrito há cinco anos, sob o impacto do tristemente célebre atropelamento coletivo de ciclistas, acontecido aqui. A notícia boa? Foi a condenação do atropelador, esta semana, a mais de doze anos de prisão.

O poema acabou incluído em uma série intitulada "A Cidade Adversa", que reúne impressões sobre distintas cenas porto-alegrenses, que acumulo na retina há mais de 30 anos. Estão no livro Luta+vã (Libretos, 2012).


Heróis

O herói de agora
é um cavaleiro,
mas sem cavalo.
Não é soldado,
foge da guerra.
Não tem linhagem,
mas tem história.
Não voa alto,
antes navega,
canta e namora
sem pressa alguma.
Suave e ligeiro,
invade as ruas
dessa cidade.

O herói presente
olha o futuro.
Quer natureza
no cotidiano,
quer seu planeta
azul e verde,
em paz e humano,
mais do que tudo.
No caos do trânsito
segue, valente,
armado apenas
do seu encanto.

O herói que admiro
enxerga longe,
detrás dos vidros
das armaduras,
onde se escondem
velhos instintos
bem conhecidos.
No seu caminho,
a todo instante,
poças de sangue
e sepulturas
no meio-fio.

O herói do dia
– melhor dizendo
– a heroína
é feminina.
Boa de briga,
despreza os carros
e a gasolina.
Vestindo saia,
carrega flores
dores no peito,
sorriso doce
acena e passa...

numa bicicleta cor-de-rosa

segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Viajando no tempo e na cidade

O Viaduto Otávio Rocha, em Porto Alegre, fotografado em
1933 por Jacob Prudêncio Herrmann.
Aproveitando a passagem do Dia Mundial do Urbanismo, no último dia 8, publico hoje esse singelo e antigo poema. Uma primeira versão, sem título, saiu no meu livro de estreia, Viagens de uma Caneta por meus Estados de Espírito (1992), e cheguei a musicá-lo, mas o resultado não ficou lá essas coisas. Recentemente, dei uma mexida nos metros e rimas, resultando no que está aí.

Foi inspirada por uma caminhada, daquelas boas, sem rumo e sem preocupações, pelo centro de Porto Alegre, nos longínquos anos de 1980, na companhia do amigo Rômulo Giralt. (Não posso garantir, mas é possível que estivéssemos sob efeito de alguma substância, mas isso é irrelevante.)

O Rômulo (que por acaso está de aniversário por estes dias, merecendo portanto a homenagem) viria mais tarde a se tornar arquiteto e professor universitário, mas já sabia muito mais sobre a história da sua cidade natal do que eu. Por esse motivo, o poema do livro está dedicado a ele.

Também utilizei os primeiros quatro versos (com uma pequena variação no terceiro) como um texto incidental falado, na introdução da canção (dele e do Mário Humberto) "Andarilho Noturno", no meu CD Trem da Utopia (2011). Clique aqui para ouvir.

Passeio n° 5

Caminhamos na chuva rala
Nossos sapatos deixam marcas
Na calçada, por entre os prédios
Que teimamos em chamar belos

Tão jovens na idade, os corações velhos...
Que vai ser de nós, quando nossos netos
Sentirem saudades, não de antigas casas,
Não da vida calma, mas desse concreto?

sexta-feira, 28 de outubro de 2016

Os funcionários também amam

... E o poema desta semana vai dedicado ao funcionalismo público, esse herói e vilão, admirado e odiado, cuja data comemoramos hoje. Como em muitas outras ocasiões, foi inspirado num fato cotidiano, a partir do singelo espanto causado pela irrupção da poesia em meio a uma visita prosaica a uma repartição pública.

Faz parte do meu terceiro livro, Dança das Palavras (Instituto Estadual do Livro, 1998)

Recomendo ler em voz alta, para melhor sentir o ritmo.


PASSAPORTES


A agente da Polícia Federal
que expede documentos de viagem
encontra-se entediada esta manhã.
Talvez por isso mesmo ela debruça
os olhos sobre um verso de Camões.

Na velha escrivaninha então se passam
as doudas aventuras que esta vida
negou-lhe por haver nascido tarde,
ou cedo; ou num país desventurado;
ou que ela mesma evita, quando pode.

E é justo esse momento de tamanho
encanto, que eu estrago quando chego
querendo renovar meu passaporte.

Só resta a mim voltar daqui dois dias
— é o prazo em que se apronta o documento,
e dar-lhe de presente este poema.

sábado, 22 de outubro de 2016

Mais um soneto (e um prêmio)

Esta semana - em que o blog completa meio ano de existência - serei obrigado a atacar com outro soneto. Não que eu quisesse, pelo contrário, preferia economizá-los, já que não faço em média mais do que um por ano e, como neste mês já publiquei este e aquele outro, periga acabar faltando material. Talvez eu seja obrigado a fazer haicais para preencher o espaço.

Mas paciência, porque afinal um deles, o penúltimo que finalizei, acaba de ser premiado - 2o. lugar na categoria regional - no 12o. Concurso Literário Mário Quintana, promovido pelo Sindicato dos Trabalhadores da Justiça Federal (Sintrajufe-RS). Além do troféu, os poemas selecionados serão reunidos num livro, a ser lançado no dia 15 de novembro, às 14h, na 62a. Feira do Livro de Porto Alegre.

Ei-lo:


Soneto XXXI


"Que posso eu amar senão o enigma?" (Nietzsche)


Bem tolo, amor, é quem te compra em drágeas
ou, ainda pior, dulcíssima emulsão,
pensando que és, amor, a cura mágica
do humano mal, divina salvação.

Ingênuo, amor, é quem pretende
permanecer distante, estar a salvo,
seguir dietas, evitar ambientes
insalubres, manter-se vacinado.

Que coisa eu posso amar, senão o enigma,
que quanto mais me é estranho, mais fascina?
Que posso amar, senão o enigma e nada 

além, buscar no outro o que me falta,
sabendo nele amar o imprevisível,
amor que a nós faz cada vez mais livres?

sábado, 15 de outubro de 2016

A infância e depois

Nesta Semana da Criança não tive tempo de publicar aqui, andei muito ocupado... brincando : )
Mas me redimo em tempo: depois de castigar o leitor com dois sonetos seguidos, segue esse poeminha antigo e singelo, que nem título tem. Está em Viagens de uma Caneta por meus Estados de Espírito. (Editora da UFRGS, 1992)

Uma vez criança,
fugirás de um seio,
pela porta da frente da casa.
E virás pro mundo.

Uma vez na estrada,
descobertas: só olhar pra frente
e não querer
além do horizonte.

Uma vez sozinho,
voltarás teus olhos,
procurando o berço de tudo,
e não verás além dos próprios...

passos.

domingo, 2 de outubro de 2016

Há quatro anos, Luta+vã vinha ao mundo

Na foto, minha editora Clô Barcellos e o poeta Ronald Augusto,
que fez a seleção e apresentação dos poemas do livro.
(foto Kiran Federico León)
No dia 3 de outubro de 2012, há exatos quatro anos, acontecia o lançamento de Luta+Vã (Ed. Libretos), meu sexto livro (quinto de poesia), na mais simpática livraria de Porto Alegre. Pela primeira vez, passei a integrar o catálogo de uma editora privada, já que os quatro primeiros foram patrocinados por entidades governamentais, e o quinto por mim mesmo.
O título faz referência a um poema de Carlos Drummond de Andrade, intitulado "O lutador", que inicia assim: "Lutar com palavras/ É a luta mais vã/ Entanto lutamos/ Mal rompe a manhã".
Além do título, um poema do livro também faz referência ao mesmo trecho de Drummond, além de dialogar com uma canção de Chico Buarque ("Eu faço samba e amor até mais tarde...") e com uma passagem célebre de Romeu e Julieta, de Shakespeare. Ei-lo:

Soneto XXIII. (Da luta mais vã)


Faço versos de amor até mais tarde
e fico deprimido de manhã.
Mistura-se ao cansaço a saciedade.
Sou o bagaço da “luta mais vã”.

E à cotovia ou rouxinol que acaso
me venham com seu canto despertar
perguntarei se terão avistado
a minha amada, quando, em que lugar?

De perguntar em vão exausto, enfim,
retornarei à torre de marfim
onde aguarda meu amor o seu leito

de morte. Onde o meu verso, porém,
encontrará seu metro, muito além
dessa amada, das palavras, do tempo.



sexta-feira, 23 de setembro de 2016

O soneto no boteco

O famoso Zicartola, no Rio de Janeiro, em cujas mesas
muita poesia nasceu.
... e o boteco no mundo.


Embora um dos segredos da poesia seja a capacidade de enxergar as coisas do cotidiano (em nossa casa, nossa rua e nossa cidade) de forma distinta da que estamos acostumados, também é fato que as viagens nos oferecem sempre oportunidades e motivações para escrever. Assim como um poema que publiquei aqui no mês passado surgiu numa viagem de ônibus pelo Rio Grande do Sul, o de hoje foi iniciado num bar, numa de minhas visitas à capital paulista, onde por acaso me encontro novamente no dia de hoje. Foi há exatos 10 anos, e continuo gostando muito dele. Está em Luta+vã (Libretos, 2012).


Soneto XXVIII (Paulistano)


O alívio de sentar-se num café
e ver um futebol sem ter idéias...
E ao tempo em que absorvo o alimento,
deixar que o chope faça o seu efeito.

Sonhar que a moça loira à mesa em frente
é a mesma que deixei nalgum lugar,
assim como hoje deixo em casa o peso
dos anos e problemas cotidianos...

O alívio de deter-se em qualquer parte
estranha a mim, alheia ao meu caminho,
alívio de ser eu, ansiado prêmio

que a mim parece inteiramente justo,
igual ao resultado da partida
jogada por dois times que eu ignoro.

sábado, 17 de setembro de 2016

Home, sweet ou nem tanto home

ou "naquele tempo em que eu e o Paulo Coelho estávamos na mesma editora"

Reparem no anúncio da contra-capa.
(Clique na imagem para ampliar)
Tava outra vez meio sem ideia esta semana, depois de ter "comemorado" por antecipação a Semana Farroupilha e até a Primavera... Qual seria o próximo poema?
De molho em casa, saindo duma gripe braba, me arrisquei (ou fui obrigado, antes que se abrigassem animais de grande porte no jardim) a cortar a grama. Por conta dessa tarefa tipicamente pequeno-burguesa, costumo lembrar dum poeminha, se não me engano o primeiro que vi impresso, no longínquo ano de 1983, após "vencer" um daqueles "concursos" para incautos, cujo "prêmio" é o direito de pagar pela edição do livro contendo o seu poema.
Curioso é que a Editora Shogun, do Rio de Janeiro, promotora do tal concurso, pertencia a Christina Oiticica, esposa de um então candidato a escritor, chamado... Paulo Coelho. Cujo livro, lançado à época pela mesma editora (ver imagem), pode ser comprado hoje num sebo por módicos R$ 1,5 mil. O sucesso é para poucos.
O poema até não era ruim, mas por ter deixado de ser inédito, acabou excluído dos meus livros individuais. Mas resolvi dar uma melhorada nele hoje, removendo os últimos quatro versos. Ficou assim:

CASA


Me lembra o quarto escuro
e a claridade do jardim.
O chão lustrado
e a grama aparada,
num domingo morno,
véspera de chuva.

Um antes de mim que me lembra
o antes de tudo:
– No princípio nada havia?
Havia sim, mas eu dormia.

E agora, por que não consigo
ficar neste quarto
e neste sol?

sábado, 3 de setembro de 2016

Chega Primavera

Enquanto isso, no jardim aqui de casa...
Batendo água lá fora, a temperatura porém mais amena, e eis que entramos em setembro. Ipês floridos pelas ruas. Nada mais previsível que eu estampar aqui um dos meus poemas primaveris, tema que eu revisito periodicamente. Não tem como escapar, morando nos Subtrópicos. Este está no primeiro livro, Viagens de uma Caneta por meus Estados de Espírito (1992).

Pé-de-Vento


Ventos da primavera
Varrendo a poeira das ruas
Para dentro dos meus olhos
Limpando a cidade os telhados
Erguendo saias distraídas
Poeira e lágrimas em meus olhos
Enchendo de ar meu peito
De sonhos e aromas a cidade
Os telhados e as saias das mulheres
Que fazem sonhar meus olhos
Lambendo o mar furiosos ventos
Da primavera brindando
brincando de desmanchar nuvens
Sonhos telhados e cidades
Nos olhos das mulheres
Varrendo a cidade erguendo saias
Suspirando olhando o mar
Furiosas lambendo lágrimas
Silenciosas correndo dos telhados
Para dentro de meus olhos

domingo, 28 de agosto de 2016

Canção da estrada aos 37

Na semana que passou atravessei o Estado do RS de ônibus, rumo às Missões. Ônibus e rodoviárias são lugares onde eu costumo escrever, desde sempre. Sabe como é, aqueles momentos em que você não tem o que fazer. Vai olhando a paisagem, as pessoas em volta, o pensamento voa... Lembrei então de um poema escrito quando eu fiz 37 anos, que surgiu numa viagem parecida. Era uma noite de lua cheia, e para variar eu pensava na passagem do tempo. Dedicado a um velho amigo, que faz aniversário quase junto comigo, e à sua companheira, o poema foi incluído no meu último livro, Luta+vã (Libretos, 2012), e, apesar do título, (ainda) não foi musicado (que eu saiba).
Mais uma vez, como na maior parte da minha produção mais recente, a dica é ler em voz alta para sentir o ritmo.

CANÇÃO DOS 37 

para Otávio e Genecy

O ônibus avança pela estrada branca
Lua sobre o Vale do Rio Taquari
Espessa neblina ocultando a várzea
Paisagem da infância não está mais aqui

Um tempo se vai, de mim arrancado
Como flecha ou filho. Outro vem aí
Pra me atropelar, se estiver dormindo
Deve ser por isto que não prego o olho
Perfurando a névoa, perscrutando a noite
Vou contando as léguas que faltam pro fim

Noite-pampa, noite-mar, noite-guaçú! 
Vamos à deriva sobre a terra-mãe
Tu regularmente acendendo as luzes
Eu na mão do acaso, me agarrando às horas
Eu na minha poltrona, tu maior que o tempo
Eu e minha insônia, tu e teu luar.

domingo, 21 de agosto de 2016

Só mais uma canção

Erika, a dona da voz, na gravação.
No embalo do poema da semana passada, que tinha violão, e já que o meu final de semana começou com música - cantei num pub na sexta à noite - e já que a música popular brasileira é a primeira influência detectável na minha poesia - aquilo que eu escutava nos anos 1970, quando meus conhecimentos de poesia escrita não iam além do conteúdo dos livros escolares - o poema da semana vai ser mais uma das letras que fiz. A canção está gravada no disco Trem da Utopia, e foi tema do videoclipe do meu amigo Júlio Munhoz.

Posto aqui a versão original, que é da década de 1980 e tem pequenas diferenças em relação à gravação, sendo a mais notável o corte dos dois últimos versos, que na hora de gravar me pareceram explícitos demais. (para compensar, cantamos a última estrofe 2 vezes e terminamos repetindo outra vez o primeiro verso dela). Que vocês acharam?



Procurar


Pelas ruas, onde as vozes
costumam se encontrar;
onde a lua, nas janelas
do décimo-quinto andar,
improvisa o nosso palco,
se a gente quiser cantar...

Fazer de cada um estrela a mais!
O sonho foi tudo o que nos restou.
Brilhar, pra não sumir de vez...

Olha as luzes da cidade,
mas não te deixa ofuscar.
Já termina um outro inverno,
tanta estrada sai daqui...

E essas montanhas não se vê jamais!
Nenhum de nós enxerga além de si.
Não passou por aqui a paz?

Deixa aí no chão o que restou de ti.
Vai, vai procurar as tuas lágrimas.
Ninguém sabe mesmo para onde ir.
Lemos o futuro em tuas entranhas.
Tanto medo só nos dá mais esperanças.
Tanta dor não cabe mais aqui...

sábado, 13 de agosto de 2016

Dia dos Pais, inclusive os que tocam violão

Pelo final dos 1980, quando eu ainda não era pai, mas volta e
meia alguém adormecia com aquelas musiquinhas que eu tocava.
(Foto Vera Zagonel)
Segue a série "Ser pai, ser filho", que integra o livro Luta+vã, com esse poema curto. A cena retratada é verídica, e com certeza familiar a muitos senão todos os meus amigos músicos: quem não tocou ou cantou para as crianças dormirem?
Reparem que o retrato doméstico, que inicia naquele clima de pai herói e protetor, termina na reflexão existencial, provocada pelo múltiplo sentido dos dois versos finais, onde "meu turno" é não só essa hora indefinida de uma noite qualquer, mas também o tempo tão bom de criar os filhos, que um dia se acaba; ou a duração total da minha vida. Eis o motivo pelo qual gosto tanto deste poema singelo.

Sentado à porta
do quarto delas
eu conto histórias.

Armado apenas
de um violão,
eu monto guarda
contra os fantasmas,
que às vezes vêm
de não-sei-onde.

Passada a noite,
terão sumido.
Meu turno findo,
irei também. 

segunda-feira, 8 de agosto de 2016

Pais, filhos, etc.

Já em clima de Dia dos Pais, o poema desta semana faz parte de um conjunto intitulado "Ser pai, ser filho", incluído em meu último livro, Luta+vã (Libretos, 2012). Na próxima postagem, darei sequência ao tema.

I.
A mão de meu pai sobre meu ombro
magro, a um tempo conforto e aviso:
– Segue por essa rota, filho,
ou com certeza irás cair!

Cair, no caso: mera obrigação
de menino que se preza.
Quando caio, cumpre-se a Justiça
de Deus; cai de meus ombros o peso
do pecado, e da boca do pai
a frase, feito pedra, cai:
– Bem que eu avisei!

E passo assim em quedas a vida,
sucessivas, cada vez mais altas,
mas todas muito bem previstas.
(E até, alguma vez,... desejadas?)

quarta-feira, 27 de julho de 2016

Voltando do Cerrado, com música

Esta semana o poema sai com atraso, devido a umas merecidas, embora curtas, férias do autor. De volta de um passeio pela Chapada dos Veadeiros, que incluiu visitas às cidades goianas históricas de Pirenópolis e Goiás, lembrei-me da inspiradora visita que fiz àquele Estado em 2009, que rendeu um dos (que considero) meus melhores poemas, que se chamou justamente "Cerrado", o bioma característico daquela região. Palavra que aqui, como de costume, reúne também outros sentidos. Quem ler o poema em voz alta vai perceber que a sonoridade peculiar provém do uso de palavras com "a" aberto, recurso conhecido como aliteração.
Por uma feliz coincidência, na mesma época conheci um talentoso pianista e compositor, que a transformou numa linda canção, gravada por ele com a cantora Ana Luiza e o guitarrista Natan Marques, no disco Entrelaço.

Cerrado


Não há sinal de cais
Mas tudo me acalma
No seu olhar
(Tavinho Moura / Márcio Borges) 

Luz de alvorada,
Serena paira a voz,
presença clara.

Desmaia a tarde.
Teus olhos bailam
entre a fumaça e a amplidão,
onde minha alma embarca.

Já noite alta, eu perco a graça.
Por mais que pese
cada palavra,
a frase exata falha.

Sou nau pirata, que vaga 
na madrugada.
Não há sinal de calma.

A chuva caia, compartilhada:
os olhos rasos d´água:
são as migalhas que terei do mar.

domingo, 17 de julho de 2016

Tragédias, filmes, poemas: adeus a Babenco

O cartaz do filme de Babenco
Esta semana o Brasil perdeu seu grande diretor argentino (de nascimento, só pra sacanear, mas se naturalizou brasileiro), Hector Babenco, sujeito que não fazia filmes só pra encher linguiça. Era dedo na ferida direto. Meu filme preferido dele é Brincando nos campos do Senhor, ambicioso fracasso de bilheteria. Mas seu maior sucesso foi Carandiru. Em sua memória, deixo aqui este poema do meu livro Dança das Palavras (1998), inspirado na mesma tragédia, ocorrida em 2 de outubro de 1992, mas tristemente atual ainda neste novo milênio.


CARANDIRU

São cento e onze cadáveres
alinhados como latas
de sardinha na gôndola
do supermercado.

Quase todos quase-pretos
que nunca mais serão pobres,
redimidos a mordidas
de cães e tiros na nuca.

Enfim salvos da prisão
perpétua em que nasceram
todos, da luta sem fim
pra ser-brasileiro.

Cento e onze deputados,
enquanto isso, negociam
seus votos, almas e sonhos
de algum futuro.

E em cada esquife carregam
algo de nós. — Eu deliro:
num, julgo ver Tiradentes;
noutro vai Pedro Primeiro;

num terceiro, Bonifácio.
Chico Mendes, Guimarães,
Prestes e Simon Bolívar,
José Martí, Che Guevara...

Cada um morrerá um pouco
mais a cada dia destes,
em que um Estado se expresse
em tiros na nuca e dentes
de cães amestrados
(porém comandados
por homens selvagens).

(Pensando bem, os selvagens
de verdade nada ganham
na comparação equívoca.
Esses homens também são
amestrados, a seu modo.)

sábado, 9 de julho de 2016

Um dia inesquecível

Foto de Tuti Flores
A semana que passou trouxe à lembrança um dia de fortes emoções, o 6 de julho de 2013. Lá estava eu, no Centro Cultural CEEE Érico Veríssimo, todo faceiro, recebendo o prêmio de "livro do ano" da Associação Gaúcha de Escritores, por meu quinto livro de poesia, Luta+vã (Ed. Libretos, 2012). O livro teve curadoria do Ronald Augusto, que selecionou poemas de meus três primeiros livros, além de um punhado de inéditos (entre os quais o que está reproduzido abaixo, e que abre o livro).

Já seria um dia inesquecível, claro, mas antes fosse só por isso. Acontece que, enquanto rolava a confraternização, a poucos metros dali o Mercado Público pegava fogo. A sala do Memorial do Mercado, onde eu trabalhava desde 2010, ficou completamente destruída. Na foto ao lado dá para ver o que sobrou da pequena mas valorosa biblioteca sobre gestão e políticas culturais, que eu vinha amealhando pacientemente ao longo dos últimos anos, e que trouxera de casa por falta de espaço.

Um dia e tanto, não?

Con anima

Que posso eu cantar de novo?
Salomão já fez os cânticos.
E o Outono, entretanto,
vem cobrando seu tributo:
quer sempre mais e mais frutos.

Sei que o Inverno já vem,
futuro exato, esperado.
Mas eis que brota, entre as pedras,
a mais teimosa das ervas
que nem a neve contém.

E tu, Primavera fresca,
vens inaugurar o espanto
e erguer, com ares de anjo,
novo castelo de vento
sobre as pedras da represa,

em cujas águas contidas
eu me vou banhar agora,
pois é Verão. Quem se importa
se haverá outros ou não,
se é de ti que sopra a vida?

segunda-feira, 4 de julho de 2016

Um requiem para Ulysses

O poema desta semana sai com algum atraso. Não é que falte material, mas a intenção de publicar com regularidade esbarra na falta de disciplina do autor, que ademais não tem o hábito jornalístico. Assim, depois de comemorar algumas efemérides (aniversário do lançamento de livros, dia das mães, etc.), comecei a me sentir atado por elas. Deu branco. Ia sortear um poema ao acaso, até que ontem, assistindo TV, me deparei com um documentário sobre Ulysses Guimarães, que faria 100 anos no próximo dia 6 de outubro (tá meio longe ainda, mas vá lá), cujo fantasma certamente assombra os pesadelos de certas lideranças fisiológicas de seu partido hoje em dia. Pois fui folhear meu livro O Primeiro Anel (1996) e não é que tinha lá um poema dedicado a ele?
Não é exatamente uma homenagem ao "Senhor Diretas", de quem não cheguei a ser um fã, embora seja impossível não ter saudades dele diante da deterioração de nossa classe política. É antes uma reflexão provocada pela enxurrada de elogios ouvidos (somente) após sua morte e também, é claro, pelo seu peculiar e poético desaparecimento, no mar e sem deixar vestígios.
Aproveito para homenagear também meu caro amigo Irno Lenz, que há exatamente um ano partia, deixando também para todos que o conheceram seu exemplo de luta e integridade.

REQUIEM IV

para Ulysses Guimarães
Morresse hoje, e seria
santo e sábio e bom
e forte como só aqueles
— os que se foram — é que sabem
ser, agora que não são mais.

Morresse hoje eu, e sobre
a tumba em abundância correriam
lágrimas de quem me desprezava.
(e para que correriam hoje,
lágrimasque em vão tentei
arrancar com versos, cartas,
promessas, súplicas e ameaças
de strip-tease?)

Morresse hoje eu, de repente,
e afinal saberiam todos
que me amavam, e eram todos
por mim amados: de um só golpe
saberiam todos, com certeza.

Nuvens que pairavam entre nós
se desfariam, e tudo estaria claro.
Agora saberiam, e agora
seria como sempre havia sido,
exceto por uma coisa:
seria tarde.

Morresse hoje eu, e encontrasses
tu, meu amigo, em minha estante,
estes versos cheios de presságio
e julgarias enfim que me compreendes,
agora sim; que sou sublime,
agora que, de fato,
já nada sou.

(Mas teria valido a pena,
ao menos, o tempo gasto
em escrevê-los...)

Morresse hoje, e os demais
habitantes do planeta,
esses bilhões de seres estranhos
(para não falar das pedras
do calçamento e do restante
do universo) nada sentiriam.


Isto é o que no fim das contas me consolará.

sexta-feira, 24 de junho de 2016

Simões, Érico e outro poema inédito, agora premiado

Capa da antologia
Lá pelo final do século passado, eu andava às voltas com teatro e, por encomenda do Marcelo Aquino, fiz uma adaptação de Ana Terra (que faz parte de O Continente, de Érico Veríssimo) para cena. Por influência do Lorca (e sua maravilhosa Yerma), partes do texto eram em versos, para serem cantadas ou declamadas. O resultado não ficou lá essas coisas, e pra cena nunca foi. (Contei essa história no prefácio de meu livro A aposta dos deuses.)
Em 2004, retomei esse material, me concentrando nessas partes, e o resultado foi o (ainda inédito) Romanceiro de Ana Terra, um conjunto de onze poemas que recontam aquela história. Dois desses poemas recriam temas folclóricos, não por acaso contados, no livro de Érico, pelo índio Pedro Missioneiro. Um deles é a Teiniaguá, ou Salamanca do Jarau.
Este ano, a Estância da Poesia Crioula resolveu homenagear João Simões Lopes Neto em um de seus concursos de poesia. Como se sabe, Simões, cuja morte completou 100 anos semana passada, havia contado já essa história, em seu livro Lendas do Sul (1913), e com certeza influenciara Érico, que foi um dos responsáveis pela decisiva reedição da obra do pelotense pela Livraria do Globo, em 1949.
Vai daí, resolvi retomar o trabalho nesse poema, e inscrevê-lo no concurso. Fui distinguido com uma menção honrosa, que irei receber depois de amanhã. Depois do churrasco, naturalmente. Ficou assim:

A TEINIAGUÁ

Os mouros de Salamanca,
expertos em artes mágicas,
ficaram loucos de raiva
quando foram derrotados
por armas dos reis de Espanha.
E foram buscar outros pagos...

Então - é o que diz o povo,
trouxeram ao Mundo Novo,
disfarçada entre sua gente,
a mais formosa princesa.
Vencendo mar e tormentas,
vieram dar no Continente.

Guardavam ódio da Igreja,
de santos, cruzes e padres.
Com o diabo fizeram parte,
pra transformar a formosa
princesa moura em feiosa
lagartixa sem cabeça.

E, no lugar da cabeça,
um cristal lhe pôs o demo,
mui transparente, vermelho.
E quando o sol refulgia
nessa gema, sem piedade,
o infeliz que a avistasse,
por descuido, até podia
cego de vez tornar-se.

Ó Teiniaguá,
cabeça de luz,
ai de quem te olhar
a olho nu.

E em sete noites de lua,
tudo ensinou-lhe o demônio:
as artes da bruxaria
mais poderosas que havia
e onde ficavam as furnas
que escondiam os tesouros.

Sendo mulher, e sutil,
desde logo a aprendiz
soube agradar a seu amo.
E em memória de sua terra,
no outro lado do Oceano,
“salamancas” se chamaram
as furnas amaldiçoadas,
que tanta riqueza encerram.

Ó Teiniaguá,
cabeça de sol,
vem me iluminar
em cada arrebol.

Por esses tempos mui duros,
no Povo de São Tomé,
houve um pobre sacristão,
mestiço de pouca fé.

Numa noite de verão,
sob a luz da lua cheia,
enquanto o padre dormia,
o sacristão tomou rumo
de uma lagoa que havia,
a poucas léguas da aldeia.

Nessa noite, a tal lagoa
um caldeirão parecia,
que andasse fervendo o diabo.
Peixe nenhum não se via,
passarinho também não;
o pasto em volta, queimado.
Foi aí que o sacristão
viu mexer-se alguma coisa:

Ó Teiniaguá,
cabeça de sol,
ai do que escutar
tua doce voz!

O sacristão ficou louco.
Pois a lenda que corria
dava, àquele que prendesse
a preciosa Teiniaguá,
poderes de morte e vida,
luxo e riquezas sem par,
castelos de prata e ouro,
rios de moeda corrente.

Tomou então da sua guampa
e nela meteu o bicho.
Escondeu-o em seu quartinho,
dele tratou com desvelo:
deu-lhe mel de lechiguana
e emprestou-lhe o próprio leito.

Ó Teiniaguá,
cabeça de luz,
ai de quem pecar
contra a Santa Cruz.

Mas um dia, a Teiniaguá
retomou a humana forma.
E o sacristão foi tomado
do amor mais louco que havia.

Na igreja buscou o vinho,
pra com ela se embriagar;
presa de enorme cobiça,
em troca de seus carinhos
roubou a Sagrada Hóstia.
Tornou-se, assim, desgraçado.

Dizem que é possível ver,
nas noites enluaradas,
vagar sua alma penada.
O que eu, cá comigo, não sei
é se procura um tesouro,
ou a princesa dos mouros,
que jurou torná-lo rei,
mas fez dele um pobre louco.

Ó Teiniaguá,
cabeça de sol,
ai de quem te amar:
será sempre só.

sexta-feira, 17 de junho de 2016

Um inédito, para variar


Esta semana, uma pessoa que não fala português, a quem fui apresentado por uma amiga comum como "poeta e músico", perguntou-me à queima-roupa sobre o último poema que eu havia escrito. Enquanto puxava em vão pela memória (nunca tive talento para memorizar poemas, meus ou de outrem), tentei ganhar tempo, explicando meu método de trabalho, que consiste em anotar ideias (em geral versos, com um certo ritmo) num caderno, parte das quais eu retomo (dias, meses ou anos) mais tarde, até ficar medianamente satisfeito com o resultado e então passar a limpo para o computador. Isso tudo em inglês, e depois de algumas cervejas... Resultado: não convenci nem a mim mesmo.
Como leitor de poesia não é coisa que anda por aí dando sopa, e não lembro de jamais me terem feito tal pergunta, apresso-me a respondê-la aqui. Assim, quem sabe, a língua portuguesa e eu ganhamos mais uma leitora. Vai aí então, como prova de que o blog não vive só do passado longínquo, essa canção despretensiosa e por ora sem nome, finalizada mês passado (se bem que ainda pode ser melhorada):

Não me entrego assim,
tão fácil. Não de graça.
Fecho a cara, sério:
há mistério em mim.

Não que eu me preserve:
preciso um pouco mais
de espaço em torno
para traçar meu rumo

Não me entrego fácil,
simplesmente, me reservo
o direito de ir em frente.
Quase sempre erro, e feio.

Não me entrego, é certo:
se errar é humano,
e o engano é belo
acertar não quero.

sábado, 11 de junho de 2016

Há 24 anos, vinha ao mundo meu primeiro "filho"




Capa de Carla Luzzato
Foi exatamente num dia 11 de junho, 24 anos atrás, que eu entrei de vez (ou fui jogado) no mundo das letras. Depois de ter alguns poemas classificados em concursos e publicados em antologias aqui e ali, saía meu primeiro livro individual.

A publicação foi consequência do Prêmio UFRGS de Literatura/Troféu Armindo Trevisan, concurso para escritores universitários gaúchos, lançado no ano anterior numa promoção conjunta entre a Pró-Reitoria de Extensão e o Instituto de Letras. O júri tinha Élvio Funck, Maria Luíza.Berwanger e Luís Augusto Fischer (a quem conheci então e que escreveu a apresentação do livro).

O livro saiu pela Editora da UFRGS, numa tiragem de 500 exemplares, já esgotada. Segue o poema de abertura. (Quem quiser mais, pode ler a íntegra do livro no meu site.)
Amigos no lançamento, no Campus Central da
UFRGS: da E para D, em pé, Karl Wüst, eu, Rômulo Giralt,
Renan Giralt,  Ivan Maraschin; sentados, Zé Barcellos e
Jorge Welzel. (Faltou o Zeca Oliveira, autor desta foto e da
outra, na contracapa do livro.)


Profissão


Me escrevo torto,
endireitando alegre as linhas
tortas do que trago:
saber e saudade.

Me explico um pouco
tenso, por escrito,
não sei se honesto
ou teatral-pálido.

Me canto suave,
cercado de ruas e pores-de-sol,
molhado de pranto 
até os ossos.

Me lanço ao mundo,
o rosto ao vento, 
ou tropeçando em versos,
aflito: vivo!

domingo, 5 de junho de 2016

No dia do meio ambiente, um poema submarino

"O barco que despertou mil sonhos de criança". Dez anos após a morte de seu
comandante, o Calypso estava prestes a ser leiloado, mas em breve deve
voltar a navegar, totalmente restaurado, segundo o Telegraph.
O poema desta semana sai com atraso, mas eu tinha dado um bônus na semana passada, OK? Então vamos lá, comemorar o Dia do Meio Ambiente.

Em 25 de junho de 1997, morria Jacques-Yves Costeau, um marinheiro e mergulhador que virou inventor e cineasta (chegou a ganhar a Palma de Ouro em Cannes). Seus filmes ajudaram a criar o que chamamos hoje com naturalidade de consciência ecológica, coisa desconhecida há algumas décadas, quando os assistíamos, ainda crianças, em TVs preto-e-branco. Tinha 87 anos. 

A frase com que a família anunciou sua morte, lida nos noticiários, já era um verso. (Em português, um verso eneassílabo, com ritmo binário.) Pedia uma continuação, e eu não pude resistir. O poema saiu no livro Dança das Palavras (Instituto  Estadual do Livro-RS, 1998).

a Jacques Cousteau, ontem falecido

I.
“Jacques Cousteau voltou ao mundo do silêncio”
— Bela frase, com que a família quis
dizer aos miseráveis habitantes
do planeta mais belo do Universo,
a todos eles, seres vivos: PACIÊNCIA!

Milhões de pessoas que não se conhecem
olharão por um momento o horizonte
limpo ou borrascoso de infinitas praias,
adicionando a eles sua própria gota
de água salgada.

Gaivotas e urubus, na dor irmanados,
hoje não disputarão seu alimento,
entre resíduos da pesca artesanal
ou predatória.

Não se verá saltando um só golfinho
à luz do sol, exceto os tristes escravos
que vivem nas piscinas de Miami.

E no Atol de Mururoa, barreiras
de coral irão erguer-se até as nuvens,
tornando-se invencíveis
para os governantes de bombas atômicas.

II.
 Ele, que trouxe à superfície o que não
existia: Mundo Novo, o primeiro
a ser criado; Sexto Continente,
onde o caos ainda reina
— ou será nos outros cinco?

Magro e feliz como Dom Quixote,
montado à proa do Calypso,
o capitão Cousteau esgrime imagens
para dentro de nossa sala de visitas.
(Irá o polvo espirrar tinta preta
sobre a toalha de mesa?

Voltará o mundo a ser o mesmo
depois de suas viagens?
Poderei nadar no doméstico açude
sem temer criaturas outrora ocultas
sob a superfície, e que hoje parecem
tão naturais à imaginação,
depois de realizadas por sua lente?

Foi-se em paz, ou desespero,
para sempre, nesse último mergulho?
Com a fronte iluminada de um santo
que simplesmente fez-se ao mar?
Ou lamentando a estupidez dos homens?

Ou voltará,
como o índio de Caetano Veloso,
“depois de exterminada a última nação indígena”
com a poderosa arma química extraída
pelos japoneses
do fígado da última baleia azul?