sexta-feira, 28 de outubro de 2016

Os funcionários também amam

... E o poema desta semana vai dedicado ao funcionalismo público, esse herói e vilão, admirado e odiado, cuja data comemoramos hoje. Como em muitas outras ocasiões, foi inspirado num fato cotidiano, a partir do singelo espanto causado pela irrupção da poesia em meio a uma visita prosaica a uma repartição pública.

Faz parte do meu terceiro livro, Dança das Palavras (Instituto Estadual do Livro, 1998)

Recomendo ler em voz alta, para melhor sentir o ritmo.


PASSAPORTES


A agente da Polícia Federal
que expede documentos de viagem
encontra-se entediada esta manhã.
Talvez por isso mesmo ela debruça
os olhos sobre um verso de Camões.

Na velha escrivaninha então se passam
as doudas aventuras que esta vida
negou-lhe por haver nascido tarde,
ou cedo; ou num país desventurado;
ou que ela mesma evita, quando pode.

E é justo esse momento de tamanho
encanto, que eu estrago quando chego
querendo renovar meu passaporte.

Só resta a mim voltar daqui dois dias
— é o prazo em que se apronta o documento,
e dar-lhe de presente este poema.

sábado, 22 de outubro de 2016

Mais um soneto (e um prêmio)

Esta semana - em que o blog completa meio ano de existência - serei obrigado a atacar com outro soneto. Não que eu quisesse, pelo contrário, preferia economizá-los, já que não faço em média mais do que um por ano e, como neste mês já publiquei este e aquele outro, periga acabar faltando material. Talvez eu seja obrigado a fazer haicais para preencher o espaço.

Mas paciência, porque afinal um deles, o penúltimo que finalizei, acaba de ser premiado - 2o. lugar na categoria regional - no 12o. Concurso Literário Mário Quintana, promovido pelo Sindicato dos Trabalhadores da Justiça Federal (Sintrajufe-RS). Além do troféu, os poemas selecionados serão reunidos num livro, a ser lançado no dia 15 de novembro, às 14h, na 62a. Feira do Livro de Porto Alegre.

Ei-lo:


Soneto XXXI


"Que posso eu amar senão o enigma?" (Nietzsche)


Bem tolo, amor, é quem te compra em drágeas
ou, ainda pior, dulcíssima emulsão,
pensando que és, amor, a cura mágica
do humano mal, divina salvação.

Ingênuo, amor, é quem pretende
permanecer distante, estar a salvo,
seguir dietas, evitar ambientes
insalubres, manter-se vacinado.

Que coisa eu posso amar, senão o enigma,
que quanto mais me é estranho, mais fascina?
Que posso amar, senão o enigma e nada 

além, buscar no outro o que me falta,
sabendo nele amar o imprevisível,
amor que a nós faz cada vez mais livres?

sábado, 15 de outubro de 2016

A infância e depois

Nesta Semana da Criança não tive tempo de publicar aqui, andei muito ocupado... brincando : )
Mas me redimo em tempo: depois de castigar o leitor com dois sonetos seguidos, segue esse poeminha antigo e singelo, que nem título tem. Está em Viagens de uma Caneta por meus Estados de Espírito. (Editora da UFRGS, 1992)

Uma vez criança,
fugirás de um seio,
pela porta da frente da casa.
E virás pro mundo.

Uma vez na estrada,
descobertas: só olhar pra frente
e não querer
além do horizonte.

Uma vez sozinho,
voltarás teus olhos,
procurando o berço de tudo,
e não verás além dos próprios...

passos.

domingo, 2 de outubro de 2016

Há quatro anos, Luta+vã vinha ao mundo

Na foto, minha editora Clô Barcellos e o poeta Ronald Augusto,
que fez a seleção e apresentação dos poemas do livro.
(foto Kiran Federico León)
No dia 3 de outubro de 2012, há exatos quatro anos, acontecia o lançamento de Luta+Vã (Ed. Libretos), meu sexto livro (quinto de poesia), na mais simpática livraria de Porto Alegre. Pela primeira vez, passei a integrar o catálogo de uma editora privada, já que os quatro primeiros foram patrocinados por entidades governamentais, e o quinto por mim mesmo.
O título faz referência a um poema de Carlos Drummond de Andrade, intitulado "O lutador", que inicia assim: "Lutar com palavras/ É a luta mais vã/ Entanto lutamos/ Mal rompe a manhã".
Além do título, um poema do livro também faz referência ao mesmo trecho de Drummond, além de dialogar com uma canção de Chico Buarque ("Eu faço samba e amor até mais tarde...") e com uma passagem célebre de Romeu e Julieta, de Shakespeare. Ei-lo:

Soneto XXIII. (Da luta mais vã)


Faço versos de amor até mais tarde
e fico deprimido de manhã.
Mistura-se ao cansaço a saciedade.
Sou o bagaço da “luta mais vã”.

E à cotovia ou rouxinol que acaso
me venham com seu canto despertar
perguntarei se terão avistado
a minha amada, quando, em que lugar?

De perguntar em vão exausto, enfim,
retornarei à torre de marfim
onde aguarda meu amor o seu leito

de morte. Onde o meu verso, porém,
encontrará seu metro, muito além
dessa amada, das palavras, do tempo.