sexta-feira, 24 de junho de 2016

Simões, Érico e outro poema inédito, agora premiado

Capa da antologia
Lá pelo final do século passado, eu andava às voltas com teatro e, por encomenda do Marcelo Aquino, fiz uma adaptação de Ana Terra (que faz parte de O Continente, de Érico Veríssimo) para cena. Por influência do Lorca (e sua maravilhosa Yerma), partes do texto eram em versos, para serem cantadas ou declamadas. O resultado não ficou lá essas coisas, e pra cena nunca foi. (Contei essa história no prefácio de meu livro A aposta dos deuses.)
Em 2004, retomei esse material, me concentrando nessas partes, e o resultado foi o (ainda inédito) Romanceiro de Ana Terra, um conjunto de onze poemas que recontam aquela história. Dois desses poemas recriam temas folclóricos, não por acaso contados, no livro de Érico, pelo índio Pedro Missioneiro. Um deles é a Teiniaguá, ou Salamanca do Jarau.
Este ano, a Estância da Poesia Crioula resolveu homenagear João Simões Lopes Neto em um de seus concursos de poesia. Como se sabe, Simões, cuja morte completou 100 anos semana passada, havia contado já essa história, em seu livro Lendas do Sul (1913), e com certeza influenciara Érico, que foi um dos responsáveis pela decisiva reedição da obra do pelotense pela Livraria do Globo, em 1949.
Vai daí, resolvi retomar o trabalho nesse poema, e inscrevê-lo no concurso. Fui distinguido com uma menção honrosa, que irei receber depois de amanhã. Depois do churrasco, naturalmente. Ficou assim:

A TEINIAGUÁ

Os mouros de Salamanca,
expertos em artes mágicas,
ficaram loucos de raiva
quando foram derrotados
por armas dos reis de Espanha.
E foram buscar outros pagos...

Então - é o que diz o povo,
trouxeram ao Mundo Novo,
disfarçada entre sua gente,
a mais formosa princesa.
Vencendo mar e tormentas,
vieram dar no Continente.

Guardavam ódio da Igreja,
de santos, cruzes e padres.
Com o diabo fizeram parte,
pra transformar a formosa
princesa moura em feiosa
lagartixa sem cabeça.

E, no lugar da cabeça,
um cristal lhe pôs o demo,
mui transparente, vermelho.
E quando o sol refulgia
nessa gema, sem piedade,
o infeliz que a avistasse,
por descuido, até podia
cego de vez tornar-se.

Ó Teiniaguá,
cabeça de luz,
ai de quem te olhar
a olho nu.

E em sete noites de lua,
tudo ensinou-lhe o demônio:
as artes da bruxaria
mais poderosas que havia
e onde ficavam as furnas
que escondiam os tesouros.

Sendo mulher, e sutil,
desde logo a aprendiz
soube agradar a seu amo.
E em memória de sua terra,
no outro lado do Oceano,
“salamancas” se chamaram
as furnas amaldiçoadas,
que tanta riqueza encerram.

Ó Teiniaguá,
cabeça de sol,
vem me iluminar
em cada arrebol.

Por esses tempos mui duros,
no Povo de São Tomé,
houve um pobre sacristão,
mestiço de pouca fé.

Numa noite de verão,
sob a luz da lua cheia,
enquanto o padre dormia,
o sacristão tomou rumo
de uma lagoa que havia,
a poucas léguas da aldeia.

Nessa noite, a tal lagoa
um caldeirão parecia,
que andasse fervendo o diabo.
Peixe nenhum não se via,
passarinho também não;
o pasto em volta, queimado.
Foi aí que o sacristão
viu mexer-se alguma coisa:

Ó Teiniaguá,
cabeça de sol,
ai do que escutar
tua doce voz!

O sacristão ficou louco.
Pois a lenda que corria
dava, àquele que prendesse
a preciosa Teiniaguá,
poderes de morte e vida,
luxo e riquezas sem par,
castelos de prata e ouro,
rios de moeda corrente.

Tomou então da sua guampa
e nela meteu o bicho.
Escondeu-o em seu quartinho,
dele tratou com desvelo:
deu-lhe mel de lechiguana
e emprestou-lhe o próprio leito.

Ó Teiniaguá,
cabeça de luz,
ai de quem pecar
contra a Santa Cruz.

Mas um dia, a Teiniaguá
retomou a humana forma.
E o sacristão foi tomado
do amor mais louco que havia.

Na igreja buscou o vinho,
pra com ela se embriagar;
presa de enorme cobiça,
em troca de seus carinhos
roubou a Sagrada Hóstia.
Tornou-se, assim, desgraçado.

Dizem que é possível ver,
nas noites enluaradas,
vagar sua alma penada.
O que eu, cá comigo, não sei
é se procura um tesouro,
ou a princesa dos mouros,
que jurou torná-lo rei,
mas fez dele um pobre louco.

Ó Teiniaguá,
cabeça de sol,
ai de quem te amar:
será sempre só.

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